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textos&imagens de
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“Reivindico meu direito de ser um monstro.”
Susy Shock
Editora Monstra é um projeto editorial da Casa 1, que tem como propósito documentar e fazer circular pensamento produzido por pessoas LGBTQIA+.
A Casa 1 é um espaço de acolhida para jovens LGBT de 18 a 25 anos que foram expulsos de casa por suas orientações afetivo-sexuais e identidades de gênero, e também uma Clínica Social
e um Centro Cultural aberto e gratuito pra todo mundo.
Para mais informações, acesse casaum.org
e monstra.casaum.org
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A autobiografia não é uma escrita do eu,
mas de uma coletividade
Tenho aprendido muito desde que comecei a estudar e a partilhar os saberes ligados às autobiografias trans. Ao ser convidade pela Casa 1 para facilitar a oficina de criação literária que resultou neste livro, me senti desafiado e recorri à técnica que tem me amparado em minha caminhada como professor: criar vida em coletividade. Fomos muitas vozes articulando, expressando, sentindo. Por quase 3 semanas, a gente ouviu, falou, silenciou, se emocionou e até chorou um pouco, porque nos arriscamos a nos expandir, e todo peito que se abre dói quando se percebe maior. Sinto afetos e agradecimentos que transbordam páginas, retorcem línguas, estilhaçam pensamentos pré-fabricados. Estar com as pessoas que compuseram esse livro foi uma oportunidade de retomar culturas antiquíssimas e atualizá-las nos nossos pulsos de vida. Recriamos línguas, códigos e nomes, investigamos outros mundos além das normas impostas sobre nós. Espero que es leitores se entreguem com generosidade às nossas experiências e aos rastros dos nossos processos de criação. Esses são caminhos um tanto misteriosos e provocantes. Investigar a si mesme é espelhar quem está à nossa volta e refletir quem veio antes de nós.
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Eu sou a linha do tempo bagunçada sem início, meio e fim.
Aqui eu me refaço sem o olhar alarmante daqueles que me enxergam como a objeção de uma era, ora objeto nas noites de tentação e ora/ção aos Domingos de interseção.
Um corpo sem alma mas considero-me uma alma sem um corpo.
Que blas/fêmea! eles disseram
Me quiseram enfiar num conceito que eles mesmo propuseram. Enquanto continuam gritando, eu atravesso a Rua do cais todos os dias a passos largos, correndo uma maratona e o prêmio é minha sobrevivência. Me encontro na desconfiguração de uma corrida para encontrar desobstrução de vias.
Eu penso que sou tanto, tanto, tanto que nem caibo nesse porto biológico.
Minhas vírgulas não faço ponto final. Estão ali mas não acabam em mim.
Amar/dores que são amadoras e mergulhadoras de mares,
rios, oceanos que desaguam na minha seringa.
Um corpo-porto-biológico.
Eu sou a reza que eu fiz pra deus.
Eu sou o louvor que cantam no altar.
Eu sou o meu próprio lar.
Perdi para achar, saí pra ficar e morri pra viver.
Quero tanto ser que já esqueci de quem sou.
a
de
laide
vai
de
lado
a de lai de
ñ é de lady
é de estorvo
ame laide
a me-lada
a de
linda eu não sou
mas
ah
de longe
melhorou
e percebeu que era amargurada ressentida que todos os caranguejos da praia tinham lhe subido pelo coração isso foi já a certa altura da idade do tempo passou a vida dedicada a não deixar que faltem velhas mas quando por fim ficou uma achou ruim estava cansada do gengibre do doutorzinho das meias na hora do sexo uma história que se for contada é capaz que acreditem as pessoas adoram alguma coisa pra acreditar eu mesma se deixar monto uma loja de crenças com as que empilhei no curso dos anos uma autobiografia pode ser um antiquário mas também uma filial da daisu eu queria que a minha não fosse hoje eu não queria ser autobiografada um problema do livro é que ele não te deixa mentir eu gosto tanto de mentir menti tanto que era velha que acabei uma toda encaranguejada eu vou montar uma banquinha com meus caranguejos todos na beira da estrada que vai pra bertioga quero que minhas lembranças belisquem quem fica preso no trânsito detesto quem suporta ficar preso no trânsito eu escreveria isso na minha autobiografia provavelmente de dentro de um carro cansado já de marginal. tudo isso talvez porque eu queira largar de lembrar, eu lembro tanto lembro de tudo, lembra?!
encaranguejada
velha
gengibre
crenças
detesto
menti
belisquem
marginal
largar
trânsito
= belisquem
exercício de aforisma:
cês que são cis que se belisquem!
[Ben]jamin
Me deram um B pra Bá
E ali mesmo eu quis modificar
Pra me caber e saber
que o B podia a mim pertencer
A derivação é de [Ben]
Naveguei
Flui
Renasci
Eu me escolhi
Acolhi
Me benzi em águas salgadas - Meu bem, tudo bem?
Ben - te - vi
Ben - te - quis
Ben - te - chorei
[Ben]ção
Benjamin ou Benjamin?
Sempre confundem com multiplicador de tomadas
um segredo por outro
Se eu pudesse te contar um segredo
te contaria em detalhes
como saí vivo.
Mas a verdade
É que nem eu sei.
Contaria como fui corajoso,
Mas a verdade é que tive medo
e me escondi
diversas vezes.
Contaria o que fiz nos piores dias
pra tentar me manter são.
Mas a verdade é que nem tentei,
nem fiz nada,
e enlouqueci rapidamente.
Se eu pudesse te contar um segredo
te contaria do que brincam as meninas
antes de se tornarem homens.
Mas, na verdade, eu mesmo, por exemplo,
me tornei qualquer outra coisa
menos homem.
o nome que me deram nunca foi encanto,
e sim maldição.
por causa dele eu morri umas mil vezes,
talvez até um milhão.
que minha mãe me perdoe,
mas esse presente eu recuso
já que ele não me serve, não vale a pena guardar.
tenho um buraco no peito
e uma faca na mão,
continuo morrendo,
mas aprendi a matar.
Aforismo da palavra “ir”:
ir em direção ao erro, também, é um acerto
Eu não esperava encontrar ele naquele dia. Ele estava na minha mente já há algum tempo. Vinha me preparando mentalmente para chamá-lo na pela internet, na segurança e conforto que ela só ela podia me proporcionar...Mas lá estava ele, sorrindo e cumprimentando as pessoas, se apresentando na maior naturalidade. E eu? Bom, eu só conseguia pensar: como ele conseguiu? Onde será que ele foi? Que caminho foi esse?
Após umas poucas palavras trocadas, lá foi ele. Usufruindo de uma calma que me faltava naquele momento. Como se a existência dele não tivesse plantado uma semente em um solo que até então eu não considerava fértil, chamado possibilidades.
E, nas possibilidades, essa existência certamente cresceu e floresceu! Um processo lento, por vezes doloroso e que, honestamente, não tem fim (e o que tem?). E nessa caminhada de crescer e florescer ele tratou de regar essa semente comigo com o que tinha nele. Outras pessoas também regaram com o que tinham. Foi naquele momento que eu vi que era possível ser. E, vendo Diogo possível, fiz Thomaz ser também. E sou, prazer.
numa tarde nublada em santos, num dia aleatório, eu e Mari passamos horas chapados olhando um grupo de caras jogando bola. não me lembro de comentar que “queria ser um desses caras”, mas ela guardou isso para si, revelou alguns anos depois. dias antes havia me interessado mais intensamente por um amigo do trabalho. acho que em partes me sentia atraído por ele, mas nas minhas fantasias eu não era A, eu era eu. fiquei confuso. não conseguia entender o que era aquela curiosidade “repentina” pelo ~universo masculino~ e a princípio me preocupei: “será que agora sinto desejo por homens?”. tendo passado anos sendo considerado uma sapatão, me apeguei à identidade como um totem imutável. veja bem - e essa categorização veio como um elemento dado, um nome sobre o qual eu não tinha escolha. tentei me convencer do contrário e horas, dias, noites, meses e anos se passaram numa tortura incessante, no qual eu batalhei contra duas pessoas, igualmente poderosas, dentro de mim. no ônibus da volta, à noite, as luzes se mesclavam com imagens: onde começa meu desejo, meu corpo, meu desejo, meu corpo? queda vertiginosa, náusea. inúmeras vezes me chamaram de ele, antes mesmo de me reconhecer diran. esses momentos me causavam medo e repulsa. ora, sempre fui uma criança medrosa, como poderia bater de frente com todos assim?
diran dirão duran dura
duro dirá dita, dito
começa na brincadeira de
ditado
diran dirá que dirão ser duro
ran ran, forma de ressignificar
rraraaaanranranranran (moto e motor)
embaralha, está tudo dito
exposto aos olhos de quem quer ver
e diriam que o diran dirá
escolhi esse justamente pra ver só aqueles que
querem ver
na minha cara
Toda tarde eu ia lá. O sol ainda estava claro o suficiente. Eu já havia chegado da escola, minha mãe estava conversando com a vizinha, meu pai nunca vinha e minha irmã, não sei onde. Era nossa primeira e última vez morando juntos, apenas nós quatro. Eu dividia o quarto com a irmã, duas camas de solteiro. Minha cama sempre com três estampas diferentes: travesseiro dos dálmatas, lençol de baixo com tema de computador de mesa e lençol de cima do homem-aranha. A da minha irmã era rosa e morangos. Eu sempre quis trocar as camas por um beliche, não importava em que posição eu dormiria, apenas a ideia de ter algo não convencional me animava. Já não acho a ideia do da troca boa. Eu amava o meu lençol do homem-aranha.
Mesmo que não fosse eu quem trocasse minhas roupas de cama, eu havia escondido debaixo do colchão, na esperança que ninguém encontrasse. Sendo aquele o melhor esconderijo possível no meu pensar. Lá ela não durou muito tempo, se perdeu, foi tirada dali, mas nunca de mim. De pensar que estava sempre debaixo do meu colchão e que a qualquer momento alguém iria achar, me deixava ansiosa, porém ainda mais animada com meu segredo. O quanto mais eu temia, mas aquilo me valia.
A casa estava silenciosa. Olhando para os cantos, eu levantava roupas de cama, pegava com rapidez, sentava, abria, olhava e olhava. Ficar encarando o máximo de tempo possível era meu prazer. Em alerta, eu tentava escutar vozes e passos. Se eu fosse rápido o suficiente, colocaria novamente debaixo do colchão e ponto. Se eu fosse pega, teria que pensar rápido, chorar, inventar alguma desculpa pelo meu mal feito. Felizmente, dessa vez, não tive. Eu sempre abria a mesma página, o resto do conteúdo, apesar de também ser arriscado, não me interessava, pois, só naquele estava o porquê de toda minha animação e aflição. E toda tarde eu ia lá, abria no meio da
revista e ficava contemplando aqueles dois homens felizes se comendo.
pois o reino de deus não consiste em palavras, mas em poder
Era verão, estávamos na praia e tínhamos acabado de almoçar. Toda minha família estava na beirada, conversando e nos observando. Eu estava apenas de sunga, sem peitos, brincando com a minha irmã. O dia estava lindo, especificamente naquele lado do mar, onde à tarde se formava uma piscina ao lado do recife. Íntimo. Meu local favorito quando o mar deixava-o existir.
O sol batia nas áreas mais bonitas sem incomodar os olhos. A água estava perfeita e cristalina, quase que consegui ver o siri que por pouco não pisei. Minha avó sempre disse que eu era muito descuidada. Os cardumes faziam seus shows. Eles nadando entre nós e vice-versa. O castanho do recife estava em realce. Onde a água não tocava, se formava uma pequena caverna com suas protuberâncias cortantes. Eu tinha medo de me ralar toda por ali. Uma tarde de graça.
Eles eram lindos e divertidos, a energia descompromissada e fala brincalhona. Me envolvia. Tinham se aproximado de mim e da minha irmã. Os dois primos, um tinha minha idade e outro a da minha irmã. Estávamos nos observando, fazendo o primeiro contato para uma possível boa brincadeira. Não tínhamos muita sorte em fazer novas amizades, então sempre éramos nós e nossos próprios primos nas tardes. Animadas com a possibilidade dessa acontecer.
Minha irmã, eloquente, se deu o trabalho de fazer toda a sala. Eu sempre quieta diante de estranhos, resguardada. Mesmo que eu quisesse, quanto maior nossa interação, mais eu me sentia incomodada. Começaram a chamar minha atenção, me agregar valor e nomes, anunciavam nossa diferença e o meu não pertencimento ao mundo dos primos. Intrusa e sem nenhum mundo sob meu domínio, me fechei ainda mais e tentei fingir que apenas os peixes
estavam ao meu redor. Ela, presente e de punhos fechados, expulsou os donos de mundo. Fechou a boca dos leões. Aliás, o mundo também a pertence, mesmo que reivindicações tenham sempre que serem feitas.
Após a retomada do poder, a tarde já não era a mesma. As minhas questões estavam expostas, mais uma vez, e eu não obtive sucesso em cobri-las novamente. Os adultos logo perceberam. Meu pai, também dono de mundo, leão de boca grande e caída, não entendia minha renúncia ao meu domínio herdado por falo e semelhança ao meu genitor. Me cobrava posse do que era meu. Meu pisar no mundo. Já não estava no mar, agora não havia peixes ao meu redor. Fiz promessas de clamar. Perto daquele lugar ainda consegui habitar sem escritura, por pouco tempo. Logo logo todo o mundo teria donos e eu não teria mais onde nadar.
Pra quem come sempre, comer é somente um hábito; pra quem é comida, o renascer é diário
De novo. Incontáveis as vezes que te corrigi ao se referir a mim. O que deveria significar ‘GATÃO”?
O que poderia estar, você, vendo colado em minhas faces? O que pode significar para mim estar do lado de cá? Eu não sinto sua mão me tocar onde deveria, sinto que fazes questão de inserir seus indicadores diretamente nessa ferida aberta em busca de vê-la abrir-se mais e mais. Teu afeto bate como bola de borracha, não no chão, na cara mesmo. Ele não fica em momento algum, volta sempre a ti, deixando-me com marcas e uma dor de cabeça. Sento-me aqui ao teu lado e permaneço só, faço questão de te olhar nos olhos e saborear meu eeeEEEE te atingir. Ele cai duro no chão e se espatifa em milhares de pedaços e antes mesmo de eu poder desviar dos pedaços pontiagudos preciso desviar de seu grosso e redondo oooOOOO. Puta merda como preciso ter agilidade para permanecer só ao teu lado, horas de yoga para poder conversar contigo sem perder o equilíbrio. Um dia você vai me levar para jantar no melhor restaurante da cidade, fará questão de que borrem todos os Os e As ao meu redor, me vestirá com o mais bonito E que eu já tive oportunidade de conhecer e eu não precisarei de estratégias para fugir de bolas de borracha.
orbitar pertencimento,
nunca
encontrar
lugar
pra afundar
essas palavras estão sendo d/escritas por uma voz que habita esse corpo, mas que já o deixou e se expande por toda parte do mundo conhecido pela cisgeneridade branca enriquecida. a eu (não “o” eu), essa voz espacializada na matéria deste mundo, venho introduzir um registro de algo que me marcou com um estilo de Ser incabível a forma que atualmente soul. desse modo, o que tenho para contar é algo de antes, diz respeito ao movimento retrógrado da memória de um corpo, hoje, em processo de cura, porém outrora já ferido pela forma como o mundo está implicado em mim. de tal maneira, que tudo aquilo que um dia visto, foi apenas insuficiente para capturar essa matéria ondular em que vos fala e circunda. assim, ressoo as primeiras tentativas feitas de me nomear, primeiro: “viado”, depois: “bichinha”, bem como aos gestos supostamente constrangedores:
i) “isso daí é frescura”
ii) “aprende a andar direito”
iii) “aprende a não pular feito moça”.
desta última, a matéria invisível em que há em mim, desistiu da ginástica e do ballet para a entrar no karatê, sempre com a tentativa-falha de não levantar desconfiança de tudo que já não poderia continuar a ser negado. tentativas-falhas, muitas, de aprender a Ser como eles, meninos e homens cisgêneros, até o limite em que seria im/possível enumerá-las:
1) “não diga ‘amei’, diga que ‘gosta’”
2) “assiste ao jogo de futebol”
3) “corta o cabelo para não parecer mulher”
4) “meninos não brincam com bonecas, abra já essa porta! destranque essa porta! eu sei que você está se escondendo aí para brincar com elas e se chorar, vai apanhar mais!”
5) “segura o choro, aguenta!”, e por aí vai e foi tanto que aprendi a palavra “travesti “ aos 9 anos e fiquei encantade, pois sabia que ali havia um ensinamento:
a eu. ainda estou aprendendo a lidar com o repúdio a que me foi imposto e as suas im/possibilidades, mas o espaçotempo do presente, não me deixou abandoná-la, a primeira bixa-travesti da minha infância foi a eu, aquela que mobiliza um saber que vacilava entre: “tudo bem ser viado, só não vira mulher”. tudo bem Ser... mas até um limite = não-Ser. então, reiniciava-se os rituais políticos de cisgenerificação:
a) “tira esse rímel!”
b) “você passou lápis de olho?”
c) “horrível!”
d) “ridículo!”
e) “você não conseguir encontrar emprego”
e por aí vai e foi y fui e soul. desde este movimento retrógrado que, hoje, retornei a fase em que consigo respirar através daquilo que me asfixiou para contar esses segredos da memória: a voz que habita esse corpo. a eu diz para continuar imaginando a vida outramente, ir além dos espaçostempos pequenos dessa matéria.
andei ensopade com o R., mesmo tendo um guarda-chuva. era nossa última tarde e a gente se despedia com um abraço que se enroscava na mão chamando para mais outro abraço. ninguém diria que era a terceira vez que nos víamos, caminhamos amigues na chuva. meu cabelo molhado ficou ainda mais batido,
a bermuda cargo pesada, pelo menos a camiseta larga e preta de raios não marcava nada, a máscara N95. atravessei a avenida de onde nos deixamos e fui a uma padaria na Madre Benvenuta com o passo lento de quem nunca entrou em algum lugar e olha curiose. um homem que trabalhava lá notou minha presença tateante, veio falar comigo e, pelas minhas costas, escutei: “posso ajudar, meu amigo?”. quando me virei de frente para ele, senti uma hesitação em seu olhar. não era aquele lugar do “ahm, desculpa, moça” que tenta te ler de alguma forma. isso, inclusive, raramente acontece comigo. foram algumas as vezes que me chamaram no masculino até escutarem minha voz, até verem algum brinco meu, até repararem nas minhas curvas — ainda mais se estou de vestido ou roupas justas, ainda que, quando reparam em meus pelos, cabelo de barbearia e estrutura corporal, a imagem se torça. mesmo que eu não acredite nisso, muitas pessoas são crentes. mas, nas vezes em que me tiram para homem, nunca se desculpam e parece que ficam em um estado de constrangimento: tu não é homem, mas também não te identifico como mulher. não me interessa o pacto de legibilidade que reduza essa ruptura do binário a algo reconhecível, acredito que a fé na transparência é uma armadilha. quem está comigo, anda comigo. porém, quando ume outre me chama no masculino assim na rua, algum prazer me atravessa, e foi isso que me fez perceber como também gostava que me chamassem de ele e não só de elu ou ile ou ili ou eli. sinto um gosto.
[sobre as] corpas visiveis e corajosas que atravessam nossos caminhos para que consigamos recalcular nossas rotas. toda linha de fuga é uma espécie de traição toda linha de fuga é um seguir para o deserto - dentro das nossas andadas nos vemos sozinhes dentro das nossas andadas andarilhas atravessamos nossos desertos interiores. caminante no hay camimo: o caminho se faz ao andar. nos movimentos quebramos a rigidez dos muros (foda-se o concreto). ailton krenak diz: importante encontrar pessoas que nos digam: eu sei do que você está falando. nossas famílias são outras, ressignificamos o significado de linhagens, renomeamos quem são nossas irmãs. a importância da memória mas também a importância do esquecimendo: esquecer quem somos destinades a ser, enterrar nossos nomes mortos. fazer do processo um ritual de cura. a máscara também é nosso rosto.
compostos de relações que são a tessitura do que nos mantem vives. se existimos na dimensão do reconhecimento, se (de)sencontrar parece ser tarefa de sobrevivência. não traçaram um mapa pra que nos achássemos e a forma como podemos circular é (ir)restrita; vamos pelo trajeto do que não se vê. preenchemos - nunca completamente - as brechas onde podemos existir e orbitamos em um movimento de colisão, é que quando duas órbutas se cruzam há uma alteração em suas rotas que afeta suas existências pra além do tempo da espera. pra cada vez que não pudemos aguardar, porque
o movimento é também o que nos mantem segures. penso em tecer tramas impossíveis, em costurar campos gravitacionais que são sempre apesar de.
e desenvolvemos dialetos que costuram tempo
e espaço em um encontro que dura ou que acabou de acabar e fica. aprendemos a desaprender a língua e também a esconder tesouros em mensagens codificadas. tudo como tentativa de atravessar, de se deixar ser permeade. e forçamos a passagem, assim como forçamos a vida através do concreto, apesar dele, em um tempo que não chega.
eu quero fuder cada pedaço do seu corpo
eu quero fuder cada pedaço do seu corpo
como se nunca tivesse vindo aqui antes
com a certeza de não poder voltar…
eu quero fuder cada pedaço do seu corpo,
desde as dobras da sua orelha
a parte de dentro do cotovelo
e o mar que existe entre suas pernas
eu quero fuder cada pedaço do seu corpo
tornando-os todos objetos sexuais
membros-sexuais
todo o seu corpo é sexual
inclusive o formato das unhas
dos pés
eu quero fuder cada pedaço do seu corpo
e sentir roçar os pelos das pernas uns nos outros
os pelos pubianos com os da face
lábios que se confundem de tanto falarem
a linguagem sagrada
do gozo
eu quero fuder cada pedaço do seu corpo
sentindo a intensidade da respiração pelo pescoço
que teima em ficar no meio das minhas mãos apertadas
(as peles suadas de quem nunca fomos e nunca seremos)
eu quero fuder cada pedaço do seu corpo
como um molotov que explode no meio da Paulista,
a avenida mais movimentada de São Paulo,
deixando tudo em chamas
eu quero fuder cada pedaço do seu corpo
como seu eu pudesse jurar, amor
que eu não sou louco
eu quero fuder cada pedaço do seu corpo
como se pudesse desmembrá-lo pra comer na viagem
depois de pegá-lo rápido no caixa de algum fast porn-food
ou de cinema
eu quero fuder cada pedaço do seu corpo
e fingir que os hematomas são tatuagens verborrágicas
gritando pra fuder de novo e de novo e de novo
com mais força dessa vez
não, não para!
eu quero fuder cada pedaço do seu corpo
como se a gente não se importasse com o que veio antes disso
nem depois
talvez, com o agora
na verdade a gente só se importa com a bateria do vibrador, que já ta acabando
eu quer fuder cada pedaço do seu corpo
sem as pausas pra água:
eu sei muito bem onde devo beber
eu quero fuder cada pedaço do seu corpo
pra me fazer sentir como se não estivesse morto
eu quero fuder cada pedaço do seu corpo
pra te ouvir gritar ou falar baixinho
‘ai não, vai devagar, mete devagarinho’
enquanto eu fodo, eu fodo, eu fodo
(porque esse é o nosso combinado
e depois a gente troca)
eu quero fuder cada pedaço do seu corpo
como se fosse o corpo inteirinho
e aí quando eu fuder cada pedaço como um inteiro
terei fudido verdadeiro
eu quero fuder cada pedaço do seu corpo
e te fazer gozar todo o trabalho sexual acumulado e não remunerado por décadas
talvez séculos
de uma só vez
em um orgasmo que dure por horas
que é mais ou menos o que acontece depois que você me fista
eu quero fuder cada pedaço do seu corpo
como se tudo isso ainda fosse pouco
porque
na verdade
é.
Uma linguagem-indizível se manifesta com nosso corpo. A vida em nós pede que estejamos atentes para traduzi-la
é peito ou é miragem?
postura
pé esquerdo mão direita
mão esquerda pé direito
fogo na cabeça
peso no salto
barriga balança
salto no peso
quadril alcança
anda como se o mundo acabasse sobre os pés
dá voltas
fica nua, só 10
confia confia e vai
pescada
fecho os olhos
me esforço para te ver
agora eu tenho cheiro
agora eu posso ver
antes de dormir, ao acordar
só vem você
todo dia te imaginando
me esforçando pra sentir
estás tão longe de mim agora
ensaio sem saber se terei estreia
mas ensaio sem pressa
vou só de calcinha e com a boca bem aberta
sinto vc no meu ouvido
sinto meu dedo te puxando
quadril, o meu e o seu juntos
nós duas colocadas uma na outra
acaba na minha boca
termina, minha cabeça na teu peito
eu te desejo
nunca me senti tão perto de você
quanto mais cresce mais eu quero
aliso aliso aperto aperto
fico pagando
nunca canso
toco em tudo
vasculho e vou indo indo
subindo indo
boca
descendo endo
coxa
aperto e não solto
só falta rasgar
gostaria disso
mostro peito
mostro bunda
mostro pau
duro ao entrar, vai mais fundo
reto
só resta óleo que dentro de mim se espalha, me consome
deixo lamber
e só mergulho
indo cada vez mais
eu só me orgulho
me dou inteira para isso
me leva e me faz
eu estou pedindo
piso e faz barulho
piso forte e aumenta
cu pra geral vê
amostro na praça
gravo e desenho
desço as escadas
mostro e jogo
hoje só me divides de calcinha
um sempre está ligado e o outro sempre a dormir, alguém tem que acordá-lo
v de vim a ar der de mim
vitoria
vislumbra
visita
vistosa
vergonha
velada
valia
verbA
vinda
volúpia
venha
visita
vigia
vara
verídica
vadia
vença
vitoriosa
três marias
Meu nome eu traduzi.
Eu já tinha re-cebido. Re-ssabido. Re-ssabiada.
Per-cebido. Per-sê vejo.
Mudei de o pra a.
De português pra bajubá. Qual é essa grafia?
Mudei o pronome vbeabhcybcakcvceKVCGuv …
E GANHEI MAIS !!!!
Minha mãe é Maria
Minha irmã vyieavlabvla tem Maria no nome
Depois
Elas me deram Maria também
Sou Maria-vai-com-as-outras
Somos 3 Marias
Quem tira o sono de travesti
também ficará sem dormir
Ela tá na TV. A sua presença desperta algo.
Sussuros do público. Será que ela é?
Estou sendo injusta? Sim. Alguns nem a chamam pelo pronome feminino.
Não é uma questão de preferência dela.
Ser mulher é a sua essência, assim como cada um sabe ou busca a sua.
Mas o questionamento virá e vem.
Os donos da ciência, com suas lupas, seus microscópios, se aproximam da tela para investigar. Examinam cada centímetro, esperando saltar um motivo aos olhos, qualquer coisa que revele a natureza da criatura. Um insight.
Me vejo ali no lugar dela. O corpo sendo dissecado por olhares constrangidos, consumível.
Objeto de estudo. Que gera certo fascínio, certo medo.
Sinto isso.
Cada vez que uma brecha se abre, o que já foi concreto se mostra incompleto,
e então eu posso ser
Apropriar-se de si é um processo doloroso, e dar conta do peso de habitar um corpo e uma mente nem sempre parece possível, quase nunca, na verdade. Mas aí eu me lembro de alguém que fez da impossibilidade uma identidade, um nome e um endereço. Uma vida inteira.
Olhos espantados e bocas abertas nunca foram capazes de censurá-la, muito pelo contrário, só fizeram alimentar o espetáculo que foi a existência de Sucia. Espetáculo esse que durou pouco, mas mudou meu mundo.
Em meio a ervas, flores e frutos, nossa amizade brotou, se tornou algo lindo e grandioso, que pra sempre eu vou guardar no fundo do meu coração.
Agradeço infinitamente pelas linhas que traçamos juntos, e mesmo agora que o silêncio toma conta de tudo e a fumaça se dissipou, me lembrar da sua risada e do seu cheirinho de mato fresco me leva diretamente de volta pros nossos fins de tarde, pra praça e pra fronteira, e então eu entendo que dá sim pra se divertir às custas do caos.
Dá sim pra ser, até não dar mais.
Só espero ter tempo para ter tempo
Vitor se entendia como gente, só. Título surgiram para encaixotar e ele não sabia em qual se encaixava.
Pesquisas e pesquisas mostraram que Possivelmente ele era não-binário, mas talvez agênero, continuava sem saber.
Não era adapto da linguagem neutra para se autonomear por uma questão de costume a usar os pronomes masculinos, porém compreendia a enorme importância da utilização para outras pessoas.
Ele se sentia menos por não utilizar a linguagem, acreditava que não pertencia a qualquer núcleo.
Além de tudo sempre que abre a boca para tratar de gênero sentia que estava completamente errado, não sabia se sabia falar. Amava ouvir e acreditava que nunca sabia o suficiente para discutir.
Qualquer questão de gênero transformar Vitor em um vulcão, transpirava por todos os lados e fervia.
Se sentia um grande idiota.
nada importa, tudo importa, o que será, será
deixa fluir, como a água
deixa levar, como o ar
deixa consumir, como o fogo
deixa repousar, como a terra
deixa
tentar, com os erros fazer tijolos dourados
caminhar, sem pensar que poderia ser diferente
Todos os dias atravesso a rua Cistema com medo de ser atropelado
O morro onde eu moro
Um dia eu tive que atravessar o morro de onde eu moro. Um morro de medo danado pra subir. Assisti (aos) meus demônios enquanto subia e chegando lá em cima fiquei paralisado. Fosse a visão panorâmica, fosse o esforço, fosse o passado, fosse a iminência do presente, fiquei paralisado de cansaço. O mundo me pedia mais. Cada, cada, cada vez mais. Cada pedacinho de mim ao máximo, sempre. E eu ia, ia dando, ia dando, deixando levar, pra ver se algum dia essa porra ia parar — não parou, não parará. Bem, subido o morro, tive de descer, tive de achar o meu lugar. Descer de onde moro, descer de onde morro, daquele morro de medo. Foi fácil no primeiro passo. O segundo foi em falso e caí rolando todos os 15 metros de altura — que agora se acumulam em 19. O terceiro passo ainda não dei, mas está para acontecer. De certo que já dancei, e já saí voando, e já corri pra um lugar bem longe de onde morro de medo. Mas mesmo assim, ainda não saí do morro.
Assisto à todos os meus demônios enquanto morro de medo no morro em que eu moro
(15.02.2018)
Texto. metalinguagem do corpo.
Texto-ronizado
Testoironizado
Textoionizado
Textorrorizado
texto. que me deixa irritado e mimado.
testo que traduz os símbolos do meu enigmático
transformando em signo um significado
que foi demasiado dramático
d’eu assumir.
Daquela primeira vez, eu e Thaís, era ensino fundamental e a gente brincava de lutinha com os meninos. Ninguém nos avisou, mas a diretora viu e ficamos de castigo. Na segunda vez, na mesma época foi porque eu gostava também de jogar bola. Depois disso, teve a vez que foi porque eu tinha braços fortes e corria muito; naquela outra, porque eu queria andar a cavalo em vez de brincar de boneca;
a outra vez porque eu não quis beijar o Lucas; a maior delas, vinda do garoto que eu gostava, porque ele me achava feia; também foi a falta do corpo e o corte de cabelo; foi pela forma de andar, por conta da camisa
e da calça alfaiataria, foi também, por gostar de mulher. Em todas as vezes, me faltou ser mulher.
de onde nasceu a diva
A vida toda fui tratado como um homem. Nunca me perguntaram se eu era um homem, mas só me trataram como um. Eu, capengando, um homem, descobri que não era nem certo: não queria beijar moças. Quem me chamava de homem, já não chamava mais. Agora, chamava de viado. Então eu já não era mais homem. Não fazia sentido ser homem se ser homem era ser algo que eu nunca fui. Nessa confusão toda de ser algo que eu não era, eu me encontrei. E eu já não era mais homem. Nem era mulher. A minha vida mudou quando me vi maquiado. Aquele menino arreganhado de medo se sentia uma diva. Esquisita, talvez pouco elegante, mas diva. Aquilo era além de não ser homem: aquilo era ser eu. Tinha vontade de melhorar aquele traje e até usar drag, mesmo que, por causa das coisas de sempre, eu soubesse que não poderia. Mas sentia que cada segundinho de fluir daquele menino pacato para algum outro lugar valia o mundo, mesmo que voltasse a ser, depois, o mesmo menino medroso de sempre.
Hoje, limitado como estou, ainda não sei definir se eu sou preso ao binário ou não. Eu só sei que a beleza de ser diva me fascina e que davi é só um dos pequenos trajes que eu uso porque me empurraram.
que seja
Diva divagando devagar pelo mundo
Perdeu-se ao nascer, na luz do luar
Alguma hora insana veio a se encontrar
Só aceitou que ela era do submundo
Deriva de uma diva que perdeu-se na vida
Teve seus momentos roubados
Seus loucos delírios assassinados
Nunca amou a si mesma, apenas foi comida
Se ainda diva quer ser davi,
Ou se davi não deixa de diva ser
Não há nada que lhes possa deter
Só há liberdade que os tome para si
o velho
Existem algumas coisas das quais eu não gosto de falar, mas que independentemente disso atropelam as tantas vozes que tumultuam minha cabeça e imploram por serem ditas. É difícil de escolher, todas as cenas parecem iguais e doem de um jeito muito parecido. Se ao menos eu pudesse fazer alguma coisa, pensava o velho em transe, eu…
Seis horas da tarde. Logo mais as crianças chegam e todes estarão juntes para o jantar. Menos o mais velho, que estará ao lado da porta de entrada em sua cadeira de balanço, apenas observando a brisa passar.
Uma vida inteira… Pra quê? Uma vida inteira jogada fora, pra quê? Fez o que pode, é verdade, mas não o que quis - se tivesse feito o que queria, estaria preso na certa… Se bem que… quando as pessoas são verdadeiramente ruins, elas não são pegas nunca. Foi então que o velho abriu um sorriso e lembrou: sua criação estava pronta, faltava só testar (mais uma vez).
Algo lhe dizia que aquele seria seu último dia vivo. Não tinha dúvidas, era o dia de testar aquela belezinha. O velho caminhou até a garagem abandonada e fechou a porta. Levou um tempo para achar o interruptor, mas acendeu a luz e viu-se diante de anos de estudo.
A máquina era simples. PhD em física, o velhote achou, certa vez, uma fenda no tempo-espaço e anotou as coordenadas. Tinha a tese de que poderia viajar no tempo-espaço através dessa fenda, só precisava de algo que ajudasse a determinar onde e quando, especificamente. Mas, pela primeira vez, isso não importava.
Tinha criado uma conexão tão grande com a fenda que não importava. Ele iria caminhando, através dela, para onde quer que fosse, fazer qualquer coisa que fosse necessária para que sua vida não tivesse sido em vão.
Aguardou e teve uma lembrança triste, para o qual foi teletransportado pela fenda na mesma hora. Estava mais novo, mais vulnerável e… bem, tava completamente fudido. Tinha fincado as mãos nas pernas e se arranhava muito. Com frequência puxava os cabelos desesperadamente, mal conseguia respirar - mas achava bonito o delineado borrado e a emergência da sensação de estar enlouquecendo, só não gostava mesmo era do ápice, do que vinha depois, do logo a seguir… Um choro descabido. Descabidamente silencioso, ainda que agonizante. Um choro de quem se pergunta “como eu vim parar aqui?” e “quem são vocês?”, ao mesmo tempo em que tenta entender quem se é e quem deixou de ser para estar naquela situação. Muita coisa pra uma criança, que de inocência não tinha nada, mas… porra, foda-se, isso não importa. Muita coisa pra uma criança.
O velho pôde estar ali, naquele momento, por dentro da pele da criança, chorando. Pôde sentir toda aquela dor correr por todas as suas juntas e logo pôde, também, chorar por dentro da pele de velho.
PRESENÇA
substantivo femino:
qualidade do que chama a atenção e impressiona
no meio turvo do indefinido
é corredeira quente que pressiona
que força até parir
aquilo que já existia
de dentro pra fora
e de fora pra dentro
e de dentro e de fora
e de fora no dentro
complemento da falta, da lacuna
daquela angústia que Lacan - e aqui falo merda
sempre acerta na minha análise
querer ser solução pra brecha aberta
que implode e existe no que não é
o conceito é abstrato
como daquela vez
Pessoas contraditórias são as que mais fazem sentido.
Só existe quem se contradiz.
Só quem é louco nega suas próprias contradições.
Quem não se contradiz ou não vive ou deixou de viver.
à g.c.v.
0
g, como você está?
da última vez que te vi não te vi
porém, haviam as nossas vozes perfurando os seus espaços
era tão agradável estar naquela frequência
sintonizades para além dos ruídos muitos dos fantasmas e policiais
não deixe de nos escrever com tinta verde e força
lembra?
da última vez que te não te vi
porém, as cores das suas palavras já davam o corpo da nossa conversa
FÉLIX
quando eu te vi
olhava a sua arte, aquela de um pornô sáfico adulterado.
zombando do sexo e do gozo
você ocultou os corpos porque eles nao importam
nem com a gente
nem pra eles
apenas seguem suas forças e destinos
um dia ouvi num lugar que gente é feita pra ser feliz
e eu me lembro disso
quando eu te vejo
à d. s.
1
escrevo de longe
de um lugar além
fora de tudo aquilo conhecido no tempo presente
escrevo no futuro
aqui
onde estou
a chuva é diária
o arco-íris, também
e conversamos por telepatia
em 2015 o mundo estava ruim
porém, hoje
no dia 15 de novembro de 3100,
escrevo de longe para te aproximar
dizer que:
as coisas estão melhor
todes estão bem
Geralmente eu me sinto feito peixe fora d’água,
quase nunca eu me sinto alguém.
É como se cada dia fosse uma fantasia, alucinação. Uma coisa só minha.
Mas aqui, agora, vendo e sendo visto,
parece que eu finalmente faço sentido.
Esse sentido é o da correnteza,
a existência fluindo e nos levando juntos.
É o entrelace das nossas memórias,
de sentimentos,
dando nó no coração e na mente,
costurando a história
e me permitindo ser gente.
a/c vitória um milhão
e como proposta de governo
eu que não sou boba, ordeno
vitória um milhão no tesouro
é o que vai tá teno.
caixa 2 caixa 3 quantas caixas
pra vitória do milhão e
pro milhão que me vai cabendo.
HIDRA
aqui do meu lugar
que não baixo nem alto
só meio - meio ânsia de ser algo que você entenda
e perceba
que aqui tem quem te levaria num jantar
vestindo o melhor traje pra apontar no meio deles
que apaguem todos Os e As de suas vozes
Canção mansa
Eu te vi cantar um texto e era tão bonite
Confesso que na minha cabeça fiz uma música com sua voz
Escutei essa canção umas 30x
Afinei meu violão em Lá pra te ouvir recitar no Sol
E fazer florir a imaginação
Você falou a primeira frase e eu senti cheiro de mato e mar
Me deixei levar, afinal eu amo o mar, sou de peixes
Mar fundo, oceano vasto e infinitas possibilidades
Conexão
Conectei a ação da mansidão.
Do olhar, da escrita, da paz que você traz
Despiu de ser pra ser grandiose em você
de forma única, sem colocar e nem acrescentar.
Levei sua canção pra alma
h
a primeira vez que eu te vi eram muitos pixels
e microfonia comunicando sua empolgação
pra falar sobre livros com desconhecidos
meu exemplo perfeito de um participante de clube
vc faz roupas de quadrados colados multicoloridos
colagem de estampas mile coisas
e te imagino sempre correndo, ágil e destemide
nunca capaz de ignorar a luz bonita que bate num canto de água
a palavra que me vem quando penso em você
termina em um e especial
doce
a/c má-fer
má-fer cobra tributos
má-fer chora no curso
fumaria má-fer um xanã,
ou c’uma taba tav’era,
má-fer,
na sala?
v
dois touros lentos
cozinhando em fogo baixo
você me fez acessível
derretendo o incêndio no meio da ponte
não tinha muita coisa na minha casa
mas uma mesa e duas cadeiras sim
e a gente se embolou nas palavras
e eu fiquei nervoso de te ver
mas vc aceitou rápido o convite
e eu te assiti e te admirei
falei mais do que devia
mas falamos do ilê, do tempo
ilê tempo fogo baixo
ser mulher, não ser mulher
dois touros lentos
bebem água e admiram a paisagem
Pele
Não falei, te escutei
e me vi em tuas palavras
tive a chance de me refazer
abriu um espaço no tempo
quis ser visto através dos teus olhos
poderia costurar tuas palavras na minha pele
que elas gritariam significados
não me sinto tão só
CADERNOS SÃO LIVROS QUE A HISTÓRIA NÃO VIU
O projeto CADERNOS da Editora Monstra e Casa 1
A partir de uma reflexão acerca dos espaços e acontecimentos que a História não consegue enxergar, ou mesmo não se interessa por isso, e do chão infraordinário das vivências do cotidiano que são capazes de narrarem a si mesmas, e que portanto disputam a ideia de Oficialidade dessa História, surgiu o projeto CADERNOS.
Promovido pela Editora Monstra e pela Casa 1, CADERNOS é um método de publicação que visa fomentar, através da criação de um espaço íntimo e coletivo, a produção literária que tem na vivência individual (logo social, política, cultural) sua principal matéria. Tendo como lastro o conceito de “Escrevivência”, cunhado pela escritora Conceição Evaristo, o projeto acredita na potência da escrita como ferramenta de afirmação de mundos e pensa o livro como um meio que pode enfrentar o circuito hegemônico de um tipo de saber, este estruturado também por outros livros.
Em suas edições, CADERNOS conta com a parceria da artista gráfica e publicadora Laura Daviña, do PS São Paulo e Parquinho Gráfico, e a orientação de pessoas convidadas para mediar (ou seria inspirar?) os encontros. Neste “Álbum de memórias”, foi Caio Jade e Félix Perini quem fizeram, lindamente, esta tarefa.
Anteriormente em 2021, na ocasião da IV Semana da Visibilidade Trans da Casa 1, foi lançado “Escrevivências: CUSturas poéticas”, a primeira experiência desta forma de trabalho. Com mediação do dramaturgo Daniel Veiga, 9 autoras e autores escreveram contos, poemas, dramaturgias, roteiros, etc. dando origem a um livro múltiplo, pulsante, cheio de vida. Na sequência, lançamos “Poéticas de Vida: escritas de si(da)”, que surgiu da parceria com o GIV - Grupo de Incentivo à Vida, iniciativa
localizada em São Paulo que desde 1990 luta pelos direitos das pessoas vivendo com HIV/AIDS, e que teve a mediação do escritor e pesquisador Leandro Noronha. Ambos os livros vêm sendo distribuídos gratuitamente ao público e espaços, centros culturais e bibliotecas parceiras.
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Álbum de memórias. -- 1. ed. -- São Paulo : Editora Monstra,
2022. -- (Cadernos ; 1)
Vários autores. ISBN 978-65-997117-2-5
1. LGBTQIAP+ - Siglas 2. Poesia brasileira
I. Série.
22-104306 CDD-B869.1
Índices para catálogo sistemático:
1. Poesia : Literatura brasileira B869.1
Aline Graziele Benitez - Bibliotecária - CRB-1/3129
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CAPA e PROJETO GRÁFICO realizados por Félix Perini e
integrantes da oficina álbum de memórias: autobiografia
e autopublicação.
A oficina foi promovida pela V Semana da Visibilidade
Trans da Casa 1 em fevereiro de 2022. O livro foi composto
nas tipografias Inter, Arial e Happy Times, com a primeira
impressão feita em março de 2022.
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