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Escrevivencias
CUSturas Poéticas
de
Afro Queer
Bruna Pires
Cae Beck
C. Hanada
Gaê Ferraroni
Lira Queiroz
Márcie Vieira
Renata Bastos
Zara Dobura
Áudio livro narrado peles autories:
“Reivindico meu direito de ser um monstro.”
Susy Schock
Editora Monstra é um projeto editorial da Casa 1, que tem como propósito documentar e fazer circular pensamento produzido por pessoas LGBTQIA+.
A Casa 1 é um espaço de acolhida para jovens LGBT de 18 a 25 anos que foram expulsos de casa por suas orientações afetivo-sexuais e identidades de gênero, e também uma Clínica Social e um Centro Cultural aberto e gratuito pra todo mundo.
Para mais informações, acesse casaum.org
SUMÁRIO
9 prefácio_ Daniel veiga
13 Afro Queer
Multi-artista, Preta poeta, Dançarina, Pesquisador das minhas inquietações. Estudante de artes da cena, futura professora.
17 Bruna Pires
TransTravesti, ainda não formada, mas muito bem informada sobre vida. Poetisa, escritora e apaixonada por existir e resistir nessas nossas vidas.
27 Cae Beck
Não-binárie e artista. Graduando em Licenciatura em Teatro pela UDESC. Estuda teatro e gênero, atua como iluminador cênico e ator-performer. Sempre que pode canta, pinta, escreve e faz compostagem. @caebeck
31 C. Hanada
29 anos, tradutora que não sabe se traduzir. Escritora nas horas vagas, queer em tempo integral.
35 Gaê Ferraroni
Um mero nbzinho transmasculino, escritor e roteirista de 24 anos. Escrevo sobre coisas perturbadas na maioria das vezes, mas no geral, sou legal. @gae.tada
48 Lira Queiroz
Sapatransviade ou não-binárie. 21. Soteropolitane, nordestine. Graduande no BI em humanidades, na UFBA. Pesquisadore, escritore, poeta, pintore, desenhista… Artista.
53 Márcie Vieira
Transvestigênere. Graduada em Dança e Pedagogia. Especialista em Metodologias do Ensino de Arte e atualmente cursa pós-graduação em D.H., Gênero e Sexualidade. Hackeando uma estética que dê conta da ética, na minha tecnologia travesti.
35, 51, 65 Renata Bastos
Mulher T, comunicadora, atriz, performan,em desconstrução com seus próprios padrões e construindo sua versão mais atualizada.
69 Zara Dobura
Travexty-Multiartista, 24 anos, Mestranda em Artes Cênicas pela ECA-USP. Agora realmente atua em todas as áreas da arte. CYBERGOSTOSA.
81 posfácio_ renata carvalho
Prefácio
Diário de Navegação de Daniel Veiga pela Oficina Escrevivências
Daniel Veiga
No ano de 2021, segunda-feira, 1 dia de fevereiro, tive o privilégio de me tornar cosmonauta e orbitar onze planetas, onze universus complexus, poéticus, apoteóticus que continuam me movendo ainda hoje.
Us planetas tinham nome: Babi, Bruna, Cae, Carol, Emi, Gaê, Leandro, Lira, Márcie, Renata e Zara. Neste primeiro dia, u planeta Ernestina ainda traçava sua rota junto aus demais, precisando, depois, seguir solo em sua própria gravidade.
Neste dia primeiro us planetas escreveram umes sobre us outres. Não se conheceram. Se reconheceram! Produziram escrita como a profana vaca, que das tetas divinas derrama o leite bom na nossa cara! Cosmonauta encantadu, tentei contribuir com uma ou duas informações do planeta dos homens falidos. Disse ser importante que us planetas conhecessem O inimigO para desconstruí-lO ou destruí-lO de dentro. Desconfio que um dia possa mudar o pensamento, mas por ora é o parco conhecimento que tenho.
Este primeiro dia foi explosivo. Us planetas colidiram, chocaram-se, esbarraram-se, abalroaram-se, mas estus corpus são de outra constituição. A física dOs homens não se aplica a elus. Uma vez colididus, em vez de serem destruidus, us planetas ganharam nova e pulsante vida e se ramificaram.
A lógica que se aplica aqui é de outra ordem. É da ordem do afeto.
Quarta-feira, 3 do dito mês, ligaram-se as câmeras e a ferramenta virtual permitiu novo encontro.
Us planetas abriram seus portos. Permitiram-se o atracar dus companheirus em seus portos. A invasão também foi de outra natureza. No começo pareceu tenebroso. A timidez. O recato. “Abrir-se é sempre doloroso”. “Eu não acredito no sofrimento como ferramenta para a arte. Isso é coisa de cristão!”. Há de se ter prazer! Há de se ter PRAZER! “Não é fazer a Poliana e fingir que está tudo bem”, mas há de SE TER PRAZER! “Vou ficar aqui quietinhe”, “Daqui a pouco eu vou”, “Deixa pra mais tarde” mas há DE SE TER PRAZER! E, de repente, “Agora eu vou!”, “Eu quero ir”, “Eu preciso ler o meu” porque HÁ DE SE TER PRAZER!
Assim, a singeleza e a cautela foram abrindo espaço para us corpus celestiais e elus ganharam velocidade quanto mais a vaca profana derramava em nossa cara a via láctea inteira, toda sorte de corpus: estrelas, asteroides, cometas, meteoros...
Eu, cosmonauta, não olhava admiradu ou aparvalhadu – como se fosse tomadu de surpresa pela grandeza dessus corpus – porque eu nunca duvidei delus. Eu ouvia encantadu. Lia deslumbradu. Comentava deleitadu.
Sexta-feira, 5 do dito mês e voltei ao Cosmos para um derradeiro encontro. Continuamus a desvelar o mundo!
Nesta jornada só há espaço para o câmbio, mas não aquele escambo dos aproveitadores assassinos que querem engolir o mundo. O câmbio, aqui, é o afetar-se, o confiar sua palavra e seu universo au outre e receber, em troca, amizade. O deleitar-se pelo significado das palavras ternura, carinho, cuidado, querença, estima, admiração.
Ouvidus atentus, palavras desta língua, a um tempo tão colonizadora e tão bela (tudo bem, porque aprendi que a boa dramaturgia é feita de contradição), três deliciosas noites de vinho, cerveja, café, água e PALAVRA. Pa-la-vra! A manifestação de quem somus. O testemunho das travas! O enunciado da era dus novus homens! O pacto daquelus que estão entre homem e mulher e afora disto, e acima disto, e distante disso. O tratado dus danosus, o convênio dus anátemas que jamais cairão. Us abomináveis que se erguerão do cosmos através e a partir da PALAVRA!
Terminamos a jornada exauridus. Que bom! Nos devoramos com o gosto bom daquelus que se querem bem. Compactuamus. Voltei à Terra e ainda estou impactadu.
É preciso estar atentu e forte e é preciso generosidade e é preciso escuta. Que privilégio estar entre estus planetas que, igualmente, foram fortes, atentus e generosus.
Só posso agradecer a viagem, aus planetas que tão bem me acolheram e a todes que contribuíram para que o breve percurso fosse tão tão suave e tão tão bonitu.
“...Mexe comigo que eu não ando só
Eu não ando só, que eu não ando só
Mexe não”
Evoé!
Axé!
São Paulo, 10 de fevereiro do ano de nossa senhora Jesus, Rainha dos Céus de 2021.
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Manual de Sobre-Vivências
Afro Queer
Haverá outro modo de se salvar-se
se não o de criar as próprias realidades?
Clarice Lispector
Assim que cheguei senti que o mar tinha um recado para me da, mal sabia o fardo que esse recado me faria carrega. Mesmo sem entende me joguei ao mar, me agarrando ao que mais acreditava, com fé e axé eu caminhava. A água gelada não me convidava a entra, mas como o canto da sereia eu sabia que algo me esperava por lá, no fundo do mar. Aquela água salgada entrava na boca como um sinal, que se tinha pouco para fala, muito para sentir e continuar a nadar.
A água tomava conta do meu corpo, já não tinha como controla para onde a água estava a me leva, comecei a navega. Mergulhar nas águas e mergulhando em mim ao mesmo tempo, fui ficando nua, crua, despida do mal.
Somente nua, despida do racional, do material e que eu iria encontra o recado no fundo do mar. Lá no fundo do mar muitas coisas iriam se revela, mesmo sem estar pronta o peso daquele recado eu teria que carrega.
As águas estavam entregando o recado de quem eu poderia vir a me tornar, navegando sem medo do que poderia ali no oceano encontra. O peso de me transforma, surgindo ali uma nova versão, que de ostra a perola negra eu iria me tornar.
Me perguntei de onde eu poderia tirar forças para contínua? Quem eu iria encontra? Sem repostas, eu sabia era necessário nela acredita.
Quando fui saindo do mar e me aproximando da areia, fui sentindo a energia muda. Era ali onde se encontrava todas as regras e convenções sociais que os Homens criaram. Ali era o espaço de domínio deles. Todos tão parecidos, agindo, vestindo e se comportando da mesma forma, forma formula do sucesso. Espaço de respeito, tesão e admiração por um único corpo. Todos estavam tão em casa com seus corpos, com suas barrigas, com seus genitais, e com suas sungas marcadas.
As regras que Eles criaram não pertenciam a minha existência e de algum modo eu sentia que eu tinha que me explica, me resumi, me defini para transitar naquele espaço, era como se eu tivesse que assumi para minha mãe novamente, e nem era sobre quem eu me atrai, não era sobre quem eu amava e sim sobre o que eu era, e quem eu era. Explicar o que eu sou, explicar desenhar, escrever, para entender o meu lugar, que ocupa o não lugar. Entre a natureza das aguas e o meu natural eu só queria ser real. Eu só queria ser real.
Eu era o erro do sistema deles! Não era o filho nem a filha estava mais para falha. Falida! Eu não convencia, só estava convencida de que ali não era o meu lugar.
Não respondia as convenções que Eles criaram, não conseguia acordar do fundo do mar, eu ainda estava vivendo lá, e não fazia sentido o que eles queriam impor e de como deveria me comporta, me convencer que seus padrões eu deveria compra. Eu juro, Eu juro eu tentei me padroniza. Quanto mais eu tentava mais eu me machucava.
Nem tão feminina e muito menos masculina, não tinha como ‘’enganar’’, de longe eu era apontada, de perto coagida, xingada e humilhada.
Eles estavam o tempo todo de algum modo, tentando me comunicar que algo de errado havia ali em mim, que de algum modo eles tinham que me convencer ao que convém a eles o que eu deveria ser.
Aquela situação estava me corroendo por dentro, chegou um ponto que era insuportável habitar a minha própria pele, o sistema que eles criaram por algum tempo dominou o meu corpo, minha liberdade, minha identidade. Era cruel ter que me mata. Ter que me esconde, esconde deles e
principalmente se esconde de mim mesma. Eu ainda era uma ostra que estava a se forma, o recado de que no momento certo a pérola negra eu iria me torna.
Só no mar que eu conseguia me liberta, nua e crua, me sentia livre lá, a mãe água sabia, me cuida, em suas ondas eu me entregava, fazia de da sua imensidão morada dos meus anseios.
Cada vez que eu mergulhava mais forte eu ficava, quanto mais eu me afundava mais eu me encontrava, me afoguei em magoas, cicatrizei minhas feridas, transformando em alegria, sabendo que ali alguém me cuidava. Do mar eu saia admirada, curada e amada.
E quando para areia eu voltava, o recado se concretizava. Havia outra de mim nascendo, havia outra possibilidade de transitar naquele espaço, outra maneira de me conectar comigo mesma. De ostra à perola negra, de tanto ser machucado, eu mesma me fiz ser amada, de tanto ser maltratada as minhas feridas foram sendo curadas, cobertas com camadas e camadas de dor que em mim estava se transformando em amor.
Não tinha problema em ser o que eu era, não tinha problema ocupa o lugar de não lugar, o problema era me matar para ocupar esse lugar vazio que eles vendem, felicidade barata disfarçada na normatividade falida. A minha cara preta, pobre, feminina, menina, velha, flácida, magra, alta, baixa, azul e rosa era cor do meu biquíni.
O recado foi dado, tesouro encontrado,
carrego esse legado.
Das águas do mar, para as águas da vida, coragem de navegar, o desconhecido encontra, a sabia que me falava da força que dentro de mim eu iria encontra. Criando um mundo onde posso me aceitar, criando um mundo onde posso te aceita.
Travesti
de A a Z
Bruna Pires
ardemos de Amor
brindam ao Universo com nosso sangue
comemos até o ultimo farelo do pão amassado pelo
[ diabo
damos tudo de nós – e até mais um pouco
esquecemos muito de gente que não é gente
fazemos tudo o que queremos até sem querer
gostamos, gozamos, gamamos e somos enganadas
hipóteses não funcionam, aqui é real
igreja me frustra! Te frustra? Deveria!
janelas abrimos quando nos fecham portas
kiwi é fruta, nós somos gente
lambe, lambo, lambuze
mama, mamo, desmama. Não Abuse, Cuidado!
navegar em nosso oceano pode ser mais incrível que
[ “descobrir” as Américas
onde já se viu, dizer que não posso
puta que pariu, cê é gostosa mesmo! Quero você só
[ pra mim!
quê maricona, me da meu aqué! Sou cara demais pra
[ ser de um só
remontando, remodelando tudo ao redor
safada, pervertida, ingrata? Julgada, morta, estuprada,
[ injustiçada – não esquece
travesti? Sim, sou Eu!
uma coisa que tem que saber: nós sentimos, temos
[ sensações também, gostos, desejos, sonhos, sentimos
faltas... perdoamos mesmo quando não nos perdoam
vários amores, vários tipos de amor, diferentes formas
[ de amar desenvolvemos
we are Here!
xocotô normatividade!
yemanjá lava nossas almas, nos banhe de proteção
zumbi, nos arme nos de força para aguentar o tronco!
A ti meu amor
Bruna Pires
mordidas,
beijos,
carinhos,
mãos passando como uma
gota de orvalho caído em planta
vem, planta em mim
teus desejos
teus sonhos
teu amor
transpasse-me tudo
eu aguento.
prometo que não vou te esvaziar
a ponto de não preenchê-lo também!
Dizer adeus
Bruna Pires
ah, deus, se tu existes me ensine a dizer adeus
liberta-me dos meus medos e monstros e amores e
[ desamores,
minhas infelicidades passadas
um dia quero me olhar e olhar para o que não quero
[ mais e dizer um adeus
definitivo
aquele adeus que não te faz mais dor, nem causa
[ insegurança
ou ao menos desconforto qualquer ao despedir-se
aquele adeus que se dá de almas, um desvínculo com
[ o que passou
conseguir se livrar do passado, do antigo, de tudo
[ que não deu mais
adeus, ó deus adeus!
Marcha
Bruna Pires
coloquemos nossas melhores roupas
armemos-nos de nossos melhores discursos
atravessaremos a ponte que divide a realidade
da existência de direitos
e a execução deles
para nossos corpos
perante a sociedade
que não seja mais só na escrita que possamos sim
ocupar e nos manter
que sejamos aceitas como somos
que não sejamos mais engraçadas, palhaçadas,
[ maltratadas, envergonhadas
não queremos ser o lúdico que os divertem
queremos ser vidas levadas a sério
não paremos no meio do caminho
mesmo que levar a vida a sério pareça ineficaz ou
desinteressante, ou desanimador
sem essa seriedade, continuaremos sendo
[ debochadas, deslegitimadas
mortas!
que toda morte travesti não seja em vão, que toda
[ luta lgbtqi+
seja respaldada por nós.
que usufruamos de nossos direitos e sejamos aceitas
[ como somos.
que a passabilidade caia
que nossos corpos não sejam sexualizados o tempo
[ todo
que não precisemos mais nos esconder na branquitude
[ cisheteronormativa
para nos sentir pertencentes
que nossas vidas não sirvam mais para animar as vidas
[ de gente de bem
que não aceitemos ser só o menos para sermos aceitas
que façamos valer cada gota de sangue, cada cabelo
[ raspado nas cadeias, cada filho expulso,
cada frustração levada a suicídio, cada ataque terrorista
[ contra as nossas formas de viver
cada estupro, cada soco na cara, cada cuspida quando
[ passamos.
que tenhamos coragem de levantar nossas cabeças e
[ dizer que estamos aqui em paz e só
queremos o legitimo direito de sermos tratadas como
[ cidadãs
que possamos acessar esses direitos, nos apossar desses
[ direitos e permanecer com esses
direitos em vida
que seja crime hediondo causado por ódio e distinção
[ de gênero toda forma de nos sangrarem
que sejam reconhecidos nossos corpos no
[ sepultamento de acordo com nossa forma de
querer em vida
que eu não seja enterrada como aquilo que não fui
[ em vida
que minha mana não seja também
que meus manos não sejam também
que as travas sejam respeitadas e possam ser amadas
[ sem se sentirem envergonhadas ou
maltratadas ou usadas
segue em marcha!
Poemeto de amor a mim
Bruna Pires
eu não quero mais o que eu já tive
não busco mais as mesmas coisas
nem sei se as quero mais
como já foram um dia
ou diferentes
ou pelo menos
lapidadas
querer saber
saber querer
lições que o tempo nos passa
lentamente com uma
rajada de ventos
e
tempestades
como reconstruir o que
parece devastado?
não sei
mas
sei que nem sempre foi tempestade
houveram semanas de sol e luz
usarei de exemplo minhas próprias
boas decisões
as que deram vitórias
bons frutos
que iluminaram caminhos e o
meu, também
os bons
exemplos
de amigos que
tenho
a meu lado
usarei os lugares
por onde passar
para contar boas histórias
hoje eu vou querer
menos que queria
antes e fazer melhor do que
qualquer outro dia!
transcentrar
Cae Beck
dramaturgia em um ato.
deve ser dirigida e interpretada
por pessoas trans.
ATO ÚNICO
ATROZ depois que eu passei a me entender como uma pessoa trans, o meu relacionamento comigo mesmo ficou ótimo. tudo fez sentido, eu me entendia e me sentia bem. o problema era o meu relacionamento com as outras pessoas: nesse sentido, tudo ficou mais difícil. em relação a família, amizade, romances e afins.
a dificuldade em lidar com a família eu já estava esperando, ainda mais sendo de uma família tradicional, religiosa e tal, com certeza eu teria que falar muitas verdades várias vezes e lutar por elas para que talvez um dia me aceitassem... com as amizades mais próximas, foi incrível. elus passaram por tudo juntamente comigo, os amigos com quem eu morava foram o apoio perfeito para mim (amo-os muito por isso e por todo o resto). sobre as amizades mais distantes: algumas pessoas se distanciaram (que bom, transfóbiques passem longe de mim!), outras se mantiveram perto mas me machucaram – eu entendo, também tive que passar por um processo para entender tudo - e, raras mas existentes, houveram pessoas que se aproximaram de mim depois do meu processo.
as relações afetivas/sexuais quase se anularam. foi muito cansativo para mim no começo da transição passar pela rejeição - ou melhor, pela falta de procura. há um abismo entre o quanto eu era procurado antes da minha autodescoberta como pessoa trans e quanto eu fui procurado depois. antes, haviam flertes recorrentes, eu usava aplicativos de encontro e conversava com diversas pessoas (mesmo quando não havia o encontro), beijava casualmente pessoas nos rolês, etc. depois, virou raridade um match, flertes na rua/na vida sumiram e nos rolês nem me olhavam. parece que virei uma pessoa invisível. parecia para mim que eu só me relacionaria com alguém: se eu ignorasse a sexualidade da pessoa e me relacionasse com alguém que me via como mulher cis (não vou mentir, me submeti a isso uma vez), se eu buscasse um físico masculino (barbas, roupas masculinas, binding, etc) que talvez um dia me gerasse alguma passabilidade e aí talvez a admiração/desejo por homens trans que tanto se escuta falar, ou se acabasse que eu e uma pessoa nos atraíssemos apesar de tudo isso - o que nunca aconteceu. horrível, né? isso se passou por muito tempo.
como eu disse, acabei me submetendo ao desrespeito uma vez, depois de mais de um ano sozinho. ao ficar nu, aconteceu algo que eu definitivamente não esperava: meu corpo causou dúvida. não apenas dúvida, e não uma boa dúvida, mas... uma certa repulsa.
tentei também a segunda opção, mas acontece que eu não me identifico com a aparência masculina e acabei me anulando um pouco para conseguir algo que nem tentando muito consegui: eu definitivamente não sou passável como homem.
depois de certa desistência (mas não muito, pois afinal eu continuei nos aplicativos), acabei encontrando alguém como eu, uma pessoa não-binária. eu e ela estávamos machucades, eu com a rejeição do mundo e ela com uma relação longa e tóxica. estávamos ambes sem muita pretensão, mas fomos sinceres o tempo todo... e não é que aconteceu?
uma das coisas mais complicadas do nosso início foi também uma das mais gostosas que vivemos juntes: o descobrimento dos nossos corpos (da outra pessoa e de si mesme). eu estava fechado e fui me abrindo sem querer. acho que com ela também foi assim. com toda a sinceridade, o carinho foi vindo e crescendo e eu fui me entregando. com medo de invadir o corpo dela, fui pelas beiradas também. tentando a deixar confortável, lendo devagarzinho os sinais... a princípio tínhamos regras: não tocar aqui, não farei assim. mas depois tudo dissolveu e as coisas aconteceram por vontade e com liberdade. desconstruí o que na minha mente significava estar em intimidade com uma pessoa. descobri junto dela a delícia que é dar o cu - que é, de acordo com paul b. preciado, o centro contrassexual do prazer - e recebi o presente que é descobrir o cu da pessoa que está comigo. hoje posso dizer que a gente junto é uma das coisas mais gostosas que já senti.
todo esse contato entre os nossos corpos e as nossas peles nos fez descobrir mais sobre nós mesmes. não apenas o sexo, mas o estar com uma pessoa trans como eu me faz sentir confortável e me faz questionar muitas coisas em mim, muitos pensamentos,
muitas discussões que tive comigo mesmo e que já haviam formado opiniões em mim. tais discussões passaram a fazer parte do nosso dia-a-dia e tivemos diversos debates sociológicos. minha visão de mim mesmo foi alterada levemente pela visão da outra pessoa que vive comigo, a quem eu permiti me ver como eu sou. acho que ela vê um pouco dela em mim – eu definitivamente me vejo nela. ela passou por um outro processo fundo de redescoberta, em que passou a se entender como travesti e também mudou fisicamente durante esses meses todos, devido à th. espero que eu tenha sido um elemento importante nesse processo...
foi construída sem eu perceber uma rede que nos envolve, nos apoia e nos protege levemente do resto do mundo. essa rede é feita de fios que nos ligam e dizem que a outra pessoa apoia a gente. o fato é que eu tenho certeza que eu posso contar com ela. muito. e ela pode contar comigo de verdade. parte disso é por sermos duas pessoas nesse mundo, parte é porque somos uma travesti e uma pessoa não-binária, mas a verdade é: vamos precisar. não uma nem duas vezes, vamos precisar muito. é extremamente importante num relacionamento que haja apoio. a rede foi construída sem percebermos, mas o apoio que a gente dá um pro outro é consciente. acho que quando tem uma transformação acontecendo na gente, ter uma pessoa que nos vê, nos ama e nos apoia é um conforto bom de se ter. a mudança de mim é algo constante, eu amo poder ser esse caos na casa que a gente construiu.
ter um relacionamento transcentrado me fez ter finalmente a amizade com uma pessoa trans que me entende que eu quis no começo da minha autodescoberta. isso não veio apenas da
atração, do afeto físico, do romance (apesar de tudo isso ser muito importante): o laço que construímos é para sempre. independente de casamento, de término, de tudo. felizmente, nós construímos além da gente uma amizade com outras pessoas que construíram com a gente um cafofo, um ninho, um rolê. uma família. nessa família, eu sinto que posso ser aquele caos e que a gente pode criar nossas próprias piras. a sensação que eu tenho é que estamos separades de todo o resto do mundo, e de certa forma estamos mesmo.
Mariana
C. Hanada
A cozinha da casa da avó de Mariana era grande o suficiente para ter duas janelas. Uma delas era a sagrada Janela-Em-Cima-Da-Pia, que dava para o muro da casa do vizinho. A outra dava para o quintal de trás, um pedaço de terra onde a jabuticabeira reinava soberana e as cebolinhas cresciam verdes o ano todo. Embaixo de tal janela havia uma mesa estrategicamente colocada, com duas cadeiras e uma clássica toalhinha de crochê com um vasinho no centro (de flores de pano, porque as de verdade dão muito trabalho).
Hoje, a toalhinha e o vaso deram lugar a uma toalha de pano com o verde da estampa desbotado, sobre a qual havia um copo de leite achocolatado para Mariana, uma xícara de café fresquinho para sua avó, e uma quantidade de pães, frios e geléias que estava desafiando as leis da física para caber em um espaço tão pequeno. Mariana tinha o cotovelo na mesa e o olhar no quintal. Estava chovendo forte demais para durar muito tempo, mas a janela estava aberta, protegida pela varanda. O vento era fresco, mas não espantava o cheiro de bolinho de chuva ficando pronto.
Às vezes, como agora, ela olhava pela janela e imaginava uma vida simples. Pena que ela mesma era tão complicada.
— Ô vó — disse Mariana, quase que sem querer, sem desviar os olhos da chuva.
— Hm?
— E se eu mudasse de nome?
Não era uma pergunta fácil, mas Mariana fingiu que era, pra que não entalasse em sua garganta.
— Iiiih, você sabe que o neto da Sebastiana, o… ai esqueci o nome dele, mas parece que agora ele inventou que quer ser cantor, falou que vai chamar “eme-cê Busanfa”, — disse a avó com uma risada, pronunciando a palavra “MC” como somente uma avó faria.
Mariana riu e se virou. Sua avó estava de frente ao fogão, com um avental em volta da cintura e uma escumadeira na mão para cuidar dos bolinhos no óleo.
— Ué, que nem o Zezé de Camargo, vó.
— Ah mas o Zezé é Zezé mesmo.
A escumadeira fez desenhos no ar enquanto a avó gesticulava.
— Mas o nome dele nem é José.
— E não? — A senhora se virou para a neta, surpresa. — E como é então?
Mariana precisou fazer uma busca rápida no celular para responder.
— É Mirosmar.
— Eita.
A avó baixou o fogo e veio se sentar com Mariana por um momento, a escumadeira ainda em sua mão.
— Mas “Buzanfa” é demais, você não acha?
— Mas eu não iria querer chamar Buzanfa, né, vó — disse Mariana, o coração indo parar na garganta. Ela poderia ter mudado de assunto e sua pergunta seria esquecida, mas por algum motivo ela só se deu conta disso depois que já tinha falado.
— Iria ser tipo, sei lá...
Ela não quis dizer os nomes que realmente havia considerado. Nomes que terminavam com as vogais erradas.
— Sua mãe ia te chamar de Jaqueline quando estava grávida de você — disse a avó.
— Mas “Mariana” é tão bonito, filha.
— Não é questão de ser feio, não — murmurou Mariana, mas rapidamente percebeu que era melhor mudar o rumo da conversa.
— Mas e se eu resolvesse chamar Jaqueline? Você iria continuar me chamando de Mariana mesmo assim?
— Mas por que?
Um vinco apareceu entre as sobrancelhas da avó, e Mariana não soube identificar se ela estava preocupada ou apenas refletindo sobre a pergunta.
Mariana deu de ombros, os dedos brincando com a barra da toalha de mesa.
— Faz diferença?
A pergunta pegou a avó de surpresa, e ela se calou por um momento.
É claro que fazia diferença. Como não faria? Como Mariana podia sequer pensar numa desfeita dessa, em rejeitar o nome que lhe foi dado com tanto amor, com o qual recebeu tanto afeto de tantas pessoas? E se esse
afeto fosse embora junto com o nome? E se ela virasse uma pessoa totalmente estranha nos olhos de sua família só porque queria ser chamada de outro jeito? Fosse Jaqueline, fosse Maria… fosse João.
A avó ainda não havia dito nada e Mariana já estava começando a suar.
— Deixa pra lá vó, era só curiosidade mesmo. — Ela olhou para a chuva novamente, que parecia mais violenta que há alguns minutos.
A avó soltou um suspiro, mas Mariana não teve coragem de descobrir que tipo de expressão estava em seu rosto.
— Jaqueline é bonito também.
Um passarinho passou voando sobre o quintal e Mariana se perguntou por um segundo porque ele teria saído de seu abrigo naquela chuva.
— E se fosse, tipo, Lucas?
Mariana continuou assistindo à chuva, ouvindo a água batendo nas telhas e pingando nas poças do chão enquanto sua avó permanecia em silêncio. O pânico dentro de si começava a borbulhar, e ela voltou a passar a barra da toalha entre os dedos, numa brincadeira que era mais ansiedade do que distração.
— Lucas é bonito também,
Mariana levantou os olhos. Sua avó estava com um sorriso fechado que ela não teve tempo de identificar antes que desaparecesse, transformando-se em um nariz franzido.
—Você está sentindo… Ai meu deus, meus bolinhos!
Dogwalk
renata bastos
Quando te pega pensando nos momentos da vida, em seu quarto, meio arrumado, meio com bossa. Com o gato do lado, se banhando com sua língua, acariciando seus pelos.Na mesma cama aquele pijama para um lado e almofada para o outro. Um lado do lençol solto, deixando o colchão amostra. Chinelos espalhados pelo chão. No armário um isqueiro rosa jogado, do outro seus perfumes arrumados.
* Carol se lembra
Lembro da vez que foi passear com seu cachorro durante o dia, próxima a saída na USP onde se concentravam mulheres T trabalhando como profissionais do sexo.
* Mulher lésbica
E aí mona? O que está fazendo aqui? Próxima vez que te ver aqui vai ter que me pagar! Vai ser multada!
* Carol,com medo fala
Aí desculpe, estava apenas passeando com meu cachorro, ele chama. Billy. Vamos Billy,
Carol sai puxando cachorro e quando vira a esquina, sai correndo até o próximo quarteirão.
Quando chega na esquina, olha para trás e se assegura que não está correndo mais perigo.
Até que aparece uma mulher T na esquina, olhando e verificando se ela realmente estava indo embora fugindo amedrontada.
Fim
Carol levanta da cama e vai preparar o café da manhã de domingo.
Fazendo a Egípcia
Gaê Ferraroni
FADE IN:
INT. CASA JOSÉ/QUARTO - NOITE
Com as luzes da casa apagadas, dois fantasmas conversam entre sí na beira da cama. Os dois homens são azulados e transparentes.
SAMUEL – um homem negro de black, batom e brincos - estala os dedos e puxa sua perna para trás, aquecendo os músculos. AUGUSTO – homem branco com mechas rosas no cabelo - lê alguns papéis que estão dentro de uma pasta marrom.
AUGUSTO
Ok, a gente vai assombrar por este
ângulo mesmo?
SAMUEL
(apontando para a pasta)
Bem, pela ficha é o que mais faz sentido. Divorciado, 52 anos, homofóbico bêbado que expulsou o filho de casa depois que descobriu que ele é gay-- até quebrou uma garrafa nele.
(se olhando no espelho ajustando o cabelo)
Não se falam faz 2 anos.
Samuel estala o pescoço, fazendo com que sua cabeça dê um 360 em volta de seu corpo.
Concordando com a cabeça, Augusto joga a pasta em cima da cama.
AUGUSTO
Ok então. Eu estava pensando em
fazer algo assim.
Ele limpa a garganta e estufa o peito, colocando um dedo do lado do ouvido, como se estivesse usando um ponto eletrônico.
AUGUSTO (CONT’D)
(cantando)
BoOoOoOoOoOoOoOoO!
SAMUEL
Uuh bem Mariah Carey gótica a
senhora, em?
Olhando para a ficha jogada aberta na cama, Samuel analisa os dados de JOSÉ (52). Uma das folhas contém uma foto de seu rosto, um homem careca e de olhar duro.
SAMUEL (CONT’D)
Eu tava pensando em fazer aquela
coreografia que eu venho treinando, o que você acha?
AUGUSTO
Puta mona, não vai ter oportunidade
melhor, faz.
A PORTA DO ANDAR DE BAIXO ABRE, os dois meninos se olham, com um sorriso no canto do rosto.
INT. CASA JOSÉ/CORREDOR - NOITE
Os dois fantasmas vão flutuando até o corredor, onde pelo vão da escada conseguem ver José entrando na casa.
INT. CASA JOSÉ/ENTRADA - NOITE
José cambaleia em sua primeira tentativa de colocar seu casaco no cabideiro. Ele tenta novamente e assim que consegue colocar o casaco, descansa sua cabeça nele.
Ele coloca suas chaves de casa no bolso do casaco pendurado e de seu bolso da calça, tira uma pequena garrafa de pinga, dando um longo gole nele.
INT. CASA JOSÉ/CORREDOR - NOITE
Os dois fantasmas assistem José beber.
AUGUSTO
(sussurando)
Bem, a gente já sabe de onde saiu a garrafa, né?
A áurea azul de Samuel muda para vermelha.
SAMUEL
Vamô se preparar.
Augusto olha para seu companheiro e sorri, concordando com a cabeça.
Os dois fantasmas somem de tela gradualmente.
JOSÉ (O.S.)
BURP.
INT. CASA JOSÉ/QUARTO - NOITE
Largado em sua cama com a mesma roupa que chegou da rua, José dorme sozinho, com sua garrafa de pinga jogada para fora da cama. Na sua mão jogada para fora da cama, seu relógio de pulso dá 3:33 horas.
Abruptamente, a JANELA do quarto de José se abre, as cortinas do quarto voam e o VENTO UIVA.
AUGUSTO
(cantando junto ao vento)
BoOoOoOoOoOoO.....
Devagar, José relutante abre os olhos. Ele levanta um pouco sua cabeça para olhar a janela, mas percebe um braço o enrolando no peito.
Ele se vira lentamente para o lado e de conchinha com José, Augusto está cara a cara com ele, abrindo um sorriso aterrorizante de ponta a ponta.
AUGUSTO (CONT’D)
Bom dia dorminhoco.
Os olhos de José se abrem em terror, ele rola para fora da cama e cambaleia até a parede. Sua perna bate na mesa de canto, fazendo com que o telefone caia. Quase que instintivamente ele se abaixa para evitar que o objeto caia.
Quando ele volta sua atenção para a cama, Augusto está coberto por um lençol branco, dando uma aparência fantasmagórica a sua figura.
AUGUSTO (CONT’D)
Volta pra cama, amor.
Augusto estica os braços e anda de joelhos na cama em direção de José, que assiste a cena em choque, sem conseguir reagir.
AUGUSTO (CONT’D)
(voz demoníaca)
VOLTA!
O lençol voa e cobre o corpo de josé, que cai ao chão no susto, cobrindo seus olhos com as mãos.
JOSÉ
AAAAAAAH!
José permanece de olhos fechados por alguns instantes, mas tudo está em silêncio. Lentamente ele tira o lençol de si e olha para os lados aflito.
José solta um ar de alívio ao não encontrar nada. Mas, ao mesmo instante, a porta de seu quarto começa a abrir, RANGENDO LENTAMENTE.
Ele olha fixamente para a porta, olhos vidrados.
A porta para de se abrir por um segundo, mas é logo escancarada por Samuel, que entra no quarto dançando duckwalk invertido, indo em direção de José.
(cena filmada igual menina de O Chamado andando de quatro).
Tentando levantar com pressa, José escorrega algumas vezes antes de conseguir se levantar. Ele pula na cama para contornar Samuel, e consegue sair pela porta.
INT. CASA JOSÉ/ENTRADA - NOITE
Descendo as escadas com velocidade, José quase vira o cabideiro na pressa. Ao chegar na entrada, força a maçaneta da porta para sair da casa, mas ela está trancada.
Ele dá tapas nos seus bolsos da calça, até olhar para o cabideiro, indo para o casaco onde deixou suas chaves.
Com a mão dentro do casaco, José franze as sobrancelhas, tirando de dentro uma foto coberta por uma gosma azulada. Ele limpa a foto e vê ele e seu filho, MATHEUS (15).
Ele vira a foto e em caneta atrás se lê: te amo pai, feliz 50 anos.
Os olhos confusos de José encaram a foto, em choque.
Uma GARRAFA É QUEBRADA atrás dele, o fazendo pular e colocar as mãos em seus ouvidos. Ele olha para a direção do barulho e vê Augusto no batente da porta, todo vestido de drag gore, com roupas pretas coladas e remendadas, olhos pretos, sem sobrancelhas e com a boca costurada fechada.
Por todo o corpo de Augusto, pedaços de garrafas quebradas estão fincadas em sua pele, sangrando.
José dá passos para trás e joga o cabideiro em Augusto, que continua andando tortamente até José.
JOSÉ
NÃO, NÃO, NÃO POR FAVOR, NÃO!
José anda de costas em direção a outro cômodo, mas Samuel aparece atrás dele, sussurando no ouvido dele.
SAMUEL
Qual o seu maior medo?
José assustado olha para trás.
Antes de conseguir reagir, Samuel o pega pela garganta e o levanta no ar.
Samuel permanece com José em suas mãos o analisando.
SAMUEL (CONT’D)
Você quer saber qual é o meu maior medo?
O rosto de Samuel se transforma para o rosto de Matheus, filho de José. Seus olhos tristes encaram seu pai.
MATHEUS
Você.
José se debate tentando sair das mãos de seu filho. O rosto de Matheus volta para o de Samuel, que sorri maniacamente para José.
SAMUEL
Eu também quero te assustar, José.
Eu quero muito.
Samuel o olha de baixo para cima lentamente.
SAMUEL (CONT’D)
Eu quero te ensinar como que as
drags fazem para esconder---
(apontando para as calças de José)
---A parte de baixo.
Augusto assiste a cena, e força a boca para desfazer os pontos que a cerravam. José olha para Augusto rindo.
AUGUSTO
HAHAHAHAHAHAHAHA!
Samuel balança o corpo de José, fazendo com que ele volte sua atenção.
SAMUEL
Vou te ensinar a fazer o tucking.
AUGUSTO
HAHAHAHA!
José desmaia.
CUT TO BLACK.
INT. CASA JOSÉ/QUARTO - DIA
Deitado em sua cama, José dorme com o lençol branco carinhosamente envolvendo seu corpo.
Alguns PASSARINHOS CANTAM na janela, o acordando lentamente.
Em um pulo, José senta em sua cama e olha para os lados, assustado; mas tudo está em ordem no quarto.
Ele olha para o lado e vê a garrafa de pinga jogada no chão. Ele se joga na cama e coloca a mão na testa, em alívio.
JOSÉ
Haha, puta que me pariu.
Ele fica com o braço na testa por um tempo, olhando para o nada.
José se levanda da cama e puxa uma caixa de sapatos do armário. Dentro da caixa, alguns papéis e cartas. Ele mexe no conteúdo da caixa até encontrar uma foto dele e de seu filho, a mesma foto que ele encontrou na noite anterior.
Ele se senta na cama e vira a foto, o mesmo recado se lê: te amo pai, feliz 50 anos.
Soltando ar pela boca, José olha para o telefone em sua cômoda. Com hesitação, ele pega o telefone e disca.
O TELEFONE TOCA, mas vai direto para CAIXA DE MENSAGENS.
JOSÉ (CONT’D)
O-oi, é José-- o teu pai. É--eu
lembrei hoje que você tinha me pedido ajuda pra consertar a geladeira--eu sei que já faz algum tempo, mas eu lembrei disso hoje e queria ver se você tá precisando de alguma coisa..
(voz trêmula)
Eu--eu não queria que você tivesse medo de mim..eu-
(limpa a garganta)
—eu não quero que você tenha medo de mim, filho. Eu queria conversar, eu queria tentar entender.
José desliga o telefone e o coloca de volta no gancho. Ele se deixa na cama e olha para o teto, com um leve sorriso no rosto.
Ele leva a sua mão para coçar o seu saco. Ele coça por alguns segundos e sua feição relaxada vai para completo terror.
Ele levanta as cobertas e olha para suas bolas, de olhos arregalados.
EXT. ENTRADA CASA JOSÉ - DIA
Andando para fora da casa, Samuel está fazendo vogue com as mãos para cima.
SAMUEL
Algum dia eu ainda vou conseguir
tirar o pau de todo homem cis.
AUGUSTO
Nossa miga, o sonho.. mas duvido
deixarem a gente fazer mais do que dar sustinho.
SAMUEL
É, mas ai, eu adoro quando a heterossexualidade frágil faz todo o trabalho por mim.
Ao pisarem na rua, os dois olham para cima, onde uma pasta marrom, identica a anterior, desce dos céus lentamente com uma áurea brilhante.
AUGUSTO
Nunca me canso de ver.
A pasta desce exatamente nas mãos de Augusto, que a abre.
Samuel se encosta em Augusto para ler também.
SAMUEL
Uuh, um transfóbico?
FADE OUT.
FIM.
Mantra
Lira Queiroz
Eu me seguro contra o meu corpo, tremendo
“Você está segura”, eu me digo
Na minha garganta sinto meu coração batendo
“Você é amada”, prossigo
Lágrimas caem como se estivesse chovendo
“Você tem apoio” sussurro comigo
Eu tento pintar, eu tento desenhar
“Você está segura” digo
Ouço músicas, vejo séries, tudo pra não pensar
“Você é amada” prossigo
Mais importante, tento acreditar
“Você tem apoio” sussurro comigo
Eu saio de casa, eu vou pra faculdade
“Você está segura” digo
Pego um ônibus, percorro a cidade
“Você é amada” prossigo
Saio com amigos, me seguro a qualquer gota de felicidade
“Você tem apoio” sussurro comigo
Digo a mim mesma que não sou culpada
“Você está segura” digo
Que está tudo bem estar magoada
“Você é amada” prossigo
Que não tem motivo para ser acusada
“Você tem apoio” sussurro comigo
“Você está segura. É amada. Tem apoio”
repito meu mantra durante todo o dia
Repito. Respiro e repito novamente pois quem sabe um dia eu acreditaria
Mantra e Amade
Lira Queiroz
Sapecat
renata bastos
Ele É todo preto, com seu pelo brilhante e curto.
Com sua aparência jovial, mas com mais de dez anos. Sua amada pisciana, carente e insegura
Procura no macho, sua expectativa de relacionamento e amor.
Ele acompanha cada date, cada encontro, cada beijo. Senti na pele de sua companheira, o desejo de ser amada. Um odor de desilusão a cada porta batendo se despedindo. Senti nela a vontade de mudar tudo, mas ainda presa há um modo de vida do passado
Ele vai na sala, como quem diz "deixa ele ir embora e vem para o quarto comigo me dar carinho"
Coitada dela que não nasceu gata, pois nele encontraria seu amor perfeito.
Tomariam banhos juntos, veriam o tempo passar, tirariam aquela soneca de tarde.
Enquanto outra pessoa cuidaria de suas areias e raçÕes.
UMA TRANS BORDANDO
Márcie Vieira
01. INT QUARTO. COM A – AMANHECER | 2016
Iniciei esse ano entendendo muito mais minha posição de gênero perante eu mesma. Mesma, com a – artigo feminino. Essa é a primeira cena que construirei assim, me referenciando no feminino. Isso não significa muita coisa, mas ao mesmo tempo significa uma imensidão. E nesta imensidão, detalhes serão ressaltados no feminino. Detalhes insignificantes, mas que para eu me construir inteira, ou ao menos tentar me construir inteira, nessa idéia de finitude em vida, será um bom passo.
Estava pensando em criar uma historicidade sobre a ocorrência do... Cansei.
Não é sobre isso que eu quero falar. Eu quero borrar aquilo que nunca expressei! Quero gritar aquilo que nunca pude dizer. Preciso e quero. Bem carnal. Bem mundano. Bem aqui e agora. Preciso sentir prazer nessa existência para seguir nessa realidade bruta.
Sobre a realidade bruta não preciso falar, pois cada um sabe a via crucis que percorre. Eu tenho a minha, beleza. Pense aí que todos teus problemas que te atormentam são os mesmos que os meus, porém eles se materializam de formas distintas. A sensação fodida é igual ou muito parecida com as que tu sente. Mas meus problemas usam roupas diferentes dos teus. Só isso.
Agora, vamos a sensação fodida... Essa coisa que parece não se completar nunca. Que mesmo num momento de completa nudez, parece estar adornada pela cultura que cria essa moldura construída e, portanto, imposta. Acho que eu queria saber quem eu sou.
Tentei ser homem. Achei um porre. Chato. Cansativo. Eu sou péssima sendo homem.
É como uma atriz que simplesmente não possui nenhuma capacidade física e/ou psicológica para interpretar determinada personagem, e por algum motivo sempre dão aquele personagem pra ela interpretar. De fora, o público a considera uma fraca atriz. Mal sabem que foi apenas um problema de seleção de elenco.
Ou seja, ser homem não é um porre, não é ruim, não é chato e nem cansativo. Eu é que comecei a observar que tudo sempre indicou que eu poderia estar interpretando uma personagem bem diferente, mas por algum motivo fiquei presa nessa tentativa frustrada de ser quem eu não queria ser. Olha que ridículo: eu sabia que não queria ser aquilo, eu sabia que poderia ser outra coisa, mas eu continuava tentando ser aquilo. Aquela coisa amorfa e sem brilho. E eu amo brilho!
Mas, não estou aqui para falar sobre esse problema de ser quem eu não queria ser. Acredito que, até certo ponto, todo mundo que se permite reflexionar sobre aspectos de sua construção e função no mundo, acaba caído nesses questionamentos. Então, grande coisa eu ter me perdido e não saber quem eu era, quem eu sou, quem eu quero ser...
Porém, acho que nesse período em que me perdi, eu acabei vivenciando coisas que poderiam ser interessantes de serem compartilhadas. Histórias minhas, somente minhas. Coisas, situações e momentos que eu construí para mim e que, por algum motivo, me auxiliaram a chegar nesse momento: na publicação desse livro. Então, alguma coisa eu estou fazendo bem.
Uma coisa que posso adiantar é a seguinte: faço isso para me esvaziar. Para me renovar. Para me reciclar. Me reconstruir. Existe um ato poderoso de auto-cura, quando compartilho com cuidado e com carinho algo meu, muito íntimo com a outra. E eu ando precisando dessa cura. Dessa sensação de que minha vida pode ter sido torta até aqui, tentando ser reta. E agora eu olho para ela e aceito-a toda tortinha como ela sempre foi: minha vida.
01. INT QUARTO. COM A – AMANHECER | 2016
Dizem que quando vamos morrer, vemos a vida passar diante dos nossos olhos, como um flash. Eu não vi a vida. Eu vi a morte.
(Zíper)
Eu deveria ter uns 4 ou 5 anos de idade. Estava na casa dos meus avós. Todos dormiam. Eu entro no quarto do meu tio. A porta é trancada. Me coloco ao lado da sua cama, enquanto ele fica deitado. Abro o botão se sua calça jeans. Desço o zíper e abro minha boca.
É muito interessante que quando um menino feminino grita que foi estupro ninguém faz nada.
(Dolls)
Sempre amei brincar com bonecas. Elas sempre foram tão fascinantes pra mim. Esse fascínio veio do fato de que eu não fazia idéia que doeria tanto brincar com elas.
Cinta. Palmadas. Advertências. Castigos. E o fascínio para com elas só aumentava.
Precisei começar a freqüentar um mestre holístico que me condenou pecador por brincar com bonecas, lembrando-me: “Deus está vendo!”. Logo me encaminharam para uma psicóloga, pois era momento para eu aprender a agir com um menino. Entre as “técnicas” da psicóloga, ela me colocava diante de bonecas e carrinhos, para ver o que eu faria. E eu sempre escolhia os carrinhos.
Eu posso até apanhar, mas idiota nunca fui.
(Fecundação)
Hora de ir pra escola!
Quem diria que aprender seria mais doloroso do que brincar com bonecas.
Meus colegas meninos não gostavam do meu jeito feminina e faziam questão de marcar meu corpo, cravando em mim o ódio deles.
Hora de ir pra escola novamente!!
Seria tão bom ter uma rede de apoio com quem contar e desabafar.
Mas nem a minha família e nem a própria escola sabiam me acolher.
Melhor apanhar em silêncio mesmo.
Hora de ir pra escola de novo!!!
Último dia de aula do Ensino Fundamental.
Estava voltando para casa quando cerca de 30 colegas do sexo masculino começaram a me perseguir na rua, correr atrás de mim, me fazendo ir no sentido oposto deles, tentando fugir. Então, começaram a atirar ovos, ódio e ofensas. 30 colegas. 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 25, 26, 27, 28, 29, 30.
(Corra Lola, Corra!)
Comecei a trabalhar.
Estava voltando para casa, após dar aula no turno da noite.
Deveriam ser umas 22h.
Caminhava rápido, até que um carro com três homens dentro diminui a velocidade e começa a me acompanhar.
Eu ignoro eles e acelero meu passo.
Então eles começam a me assediar, chegando a perguntar quanto seria o programa para sair comigo. Meu coração dispara.
Começo então a criar um novo caminho, para tentar me afastar deles.
Mas eles conseguiam ser mais rápidos e voltavam a me encontrar, mesmo comigo correndo. Então, eles começam a gritar: “Corre! Corre, que hoje tu vai morrer viado!”.
Eu acho que parte de mim segue correndo deles até hoje.
(Classificados)
Conheci um rapaz. Jean, o nome dele.
Cara humilde, com uma história de vida muito sofrida.
Ele demonstrava tanta carência. E eu o acolhi. O abracei. O beijei.
Eu sabia que aquela areia poderia ser movediça, mas eu também estava muito carente.
Me entreguei.
Fiz de tudo para ajudar ele, levantar ele.
Quando dei por mim, ele já havia tirado quase tudo de mim: minha dignidade, minha auto-estima, meu dinheiro.
Como se apaixonar, quando eu nem sequer sabia o que era o amor?
(Placar)
Tenho uma nova entrevista de emprego.
Meu currículo é elogiado e a vaga é quase garantida.
Chego na entrevista e na recepção, após olharem para mim, me avisam que todas as entrevistas acabaram.
Tenho outra entrevista, na qual a coordenadora me questiona se eu não gostaria de cortar meus cabelos.
Tenho uma nova entrevista, mas eu sou muito sensível, inclusive me questiona se eu não estava com frio usando
roupas justas, se não seria melhor eu usar roupas largas?
Tenho uma nova entrevista, o dia seguinte a coordenadora me liga questionando se nos meus antigos trabalhos eu já possuía uma estética feminina ou se eu era mais masculino.
Eu posso até não ter morrido durante essas entrevistas.
Mas elas seguiam coordenadoras e eu seguia desempregada.
Um a zero para elas.
(Inércia)
Estou parada em casa.
Não consigo mais sair do meu quarto.
A respiração acelera.
Em alguns momentos a realidade desaparece e tudo perde sentido.
Sinto medo.
Descubro estar com síndrome do pânico.
Olho pela janela e vejo a vida passando.
Abro a janela e volto a sentir o cheiro da vida.
Fecho a janela e volto a me deitar.
Dormindo eu pareço não incomodar o Mundo.
(Doador de Esperma)
Estava próximo do Natal. Em uma situação familiar, finalmente ouço do meu pai: “É um desgosto saber que tu saiu de dentro de mim.”. O contexto importa?
Ah querido papai, se o senhor soubesse metade da minha história de vida, saberia que precisaria de muito mais pra me destruir.
Mas, por algum motivo, aquela breve frase me atropelou. E eu vou para o chão novamente. Meu corpo já está tão cansado. Meu olhos pesados. Acho que vou deitar aqui nesse cantinho mesmo.
É... eu acho que era isso. Engraçado, dizem que quando vamos morrer, vemos a vida passar diante dos nossos olhos, como um flash.
Eu não vi a vida. Eu vi diversas mortes.
03. INT VIRTUAL. MINHA IMAGEM TRAVOU – MADRUGADA | 2018
A minha imagem travou
Quase caiu, tombou
Mas não findou
Por um breve momento congelou
Então aqui estou
E meu ser me mostrou
Que ele não se acuou
Apenas se afetou
Outro achou que turvou
Pois meu corpo gritou
Só sei que tudo girou
E, agora, Travesti eu sou
Abalou!
Minha imagem travou
Gostou?
04. EXT PSI. SORO CISGÊNERO – TARDE | 2019
Quando eu tinha 10 de idade um médico falou para os meus pais que a minha corpa era insuficiente. Eu estava parada na frente do médico, com as calças baixadas até o joelho, revelando o meu órgão genital. Lembro dele falar para os meus pais que o desenvolvimento da minha corpa estava muito atrasada e que isso não era bom. Que isso seria uma grande problema para a minha vida. Lembro também do médico olhar para mim, segurar na pontinha do dedo mindinho dele e dizer que hoje eu era daquele tamanho mínimo, mas que logo eu seria de uma tamanho muito maior e que aquilo me deixaria feliz. Ele receitou vários hormônios masculinos para eu tomar e realizar algumas consultas periódicas para ele poder fazer o acompanhamento. Acompanhamento, do tamanho da minha corpa. Um dos remédios tinha gosto de sangue podre e me lembrava a morte. Na composição daquele remédio dizia conter testículos de boi. Até aquele momento eu nunca havia sentido nojo da minha corpa, mas depois de toda aquela vivência o asco que eu passei a nutrir por mim foi enorme. Piorava, cada vez que eu tinha consulta com aquele médico. Em uma das consultas, na presença do meu pai, ele pediu para eu deixar meu órgão genital ereto, para ele poder ver o andamento do tratamento. Como cada vez que eu entrava no consultório dele eu entrava em estado de choque, eu fiquei lá parada, enquanto ele pegava no meu órgão genital, fazendo movimentos para frente e para trás, afim de vê-lo ereto. Meu pai viu tudo e não fez nada. Por eu ser extremamente feminina, meu pai nunca gostou de mim. Naquele dia eu ima-
gino que ele sentiu uma felicidade ao ver aquela cena, pois “o falo” seria a solução de todos os problemas! Doeu muito vivenciar aquilo e não ter para quem contar e para quem correr e pedir proteção. Eu confesso que não vi nenhuma mudança na minha corpa, apenas notei a mudança da minha voz, que começou a ficar mais grave. Cada vez que eu ia falar e minha voz mudava de registro, indo do agudo para o grave, minha família celebrava. Eu estava virando um homenzinho, até que enfim! Era ridículo. Tudo era muito cruel e extremamente superficial. Ninguém nunca perguntou como eu estava, como eu me sentia, se eu queria passar por tudo aquilo. O fato de um exame de sangue ter dito, em tom de denuncia, que meu corpo produzia muito mais estrogênio do que testosterona, fez com que meus pais, a medicina e o Estado decidissem sobre a minha corpa. Eu morri um pouco naquele período. Mal sabia eu que aquela não seria a única morte social que eu iria vivenciar. Depois de muita violência institucionalizada e eu já aprendendo a amar a dor, fui descobrir o que era uma corpa intersexo. Fui entender o que haviam feito comigo. Fui compreender a dimensão de tudo aquilo. Tudo pelo simples motivo de eu nunca ter encontrado alguém que me dissesse: “Você é suficiente!”. Eu tive que aprender a dizer isso para eu mesma. Várias vezes eu disse, mas mentindo, pois eu ainda acreditava naquele médico. Não era só minha corpa que era insuficiente. Eu era insuficiente. As coisas que eu fazia eram insuficientes. Minhas conquistas eram insuficientes. Minha existência era insuficiente. Deixar de existir nunca foi uma opção, pois eu nunca soube muito bem como existir, em primeiro lugar. Mas, de algum lugar, de alguma forma, eu tirei força não sei de onde para pedir ajuda. Para que minha mãe cuidasse de mim, pois eu teria
de voltar várias casinhas desse jogo de tabuleiro que é a vida. Entender minha corpa transgênera, intersexo, numa cidade do interior, tem sido o desafio que me trouxe alegria de viver, novamente.
05. EXT WHATS. EDY2020EDI – VESPERTINO | 2020
Ano passado foi dedo no cu e gritaria, mana!
Era tanto absurdo, que eu estava que nem cu que não passa
uma agulha.
Ver a figura que deveria ser nosso maior representante no governo federal, se abster da forma mais
criminosa, foi de cair o cu da bunda.
Tiveram momentos que eu fiquei com o cu na mão.
Mas tinha horas que eu pensava: “Vou me entregar?” Meu cu!
Tá querendo que eu desapareça? Teu cu. No fim de cada dia
eu mentalizava, para ter fogo no cu e agüentar o dia seguinte.
Só sei que eu estudei até meu cu fazer bico.
Afinal, quem tem cu: tem medo!
Pois eu não nasci com o cu virado pra lua.
Não posso me dar ao luxo de encher o cu de cachaça.
Agora eu penso: o que posso fazer para ter mais segurança
e estabilidade esse ano? Com a atual administração?
Ai, meu cu.
Sendo que cada dia que vejo a realidade do Mundo, eu penso:
O que tem o cu a ver com as calças?
06. INT E EXT. TRIPA – ECLIPSE | 2021
Eu vi uma imagem que trouxe paz para o meu cu.
Uma imagem que travou todo meu bairro.
As pessoas estavam tombadas na rua e aquilo não me afetou.
“Cisgeneridade morre a pauladas na calçada”, li no jornal cibernético.
Eu ri e fui tomar no cu com saliva matinal, afinal toda travesti sabe que para deslizar, precisamos amar e dizer: “eu sou”, “eu me fiz”, “eu me lambi”, “eu me pari”.
Parabéns pelo meu chá de revelação travesti!
Quando minha família foi estourar o balão gigante, para ver que cor de pó tinha dentro, saiu cocaína, sendo inalada pelos pulmões cisgêneros deles.
Assim, eles conseguiram ativar a cognição precária deles, finalmente fabulando que eu sou a Imperatriz da minha existência.
O mundo não me cegou, pois eu uso RayBan BL.
Não sou caminhoneira, mas estou sempre pronta.
Inclusive de chuça feita.
E até quando não está feita.
Quer comer um cu e ver flores?
Demônio!
Quero usar papel higiênico de folha dupla perfumado só pra ti, macho escroto que me atrai.
Me atrai, só para que depois do coito eu possa expelir teu néctar que ficou dentro de mim e misturar com meu primer, pra fixar melhor minha make.
Afinal, o sol ta forte e meu RayBan BL não ta dando conta de proteger todo meu rosto e o suor escorre até chegar no meu colo, entrando no meio dos meus seios e me deixando iluminada.
Pego esse suor e uso de highlighter nas minhas maças do rosto.
A mesma maça que Adão lambeu e depois colocou a culpa em mim.
Eu sou Eva, Lilith e Serpente.
Eu sou Travesti!
Eu sou a agulha de crochê no aborto.
Eu sou o anabolizante que brocha do hétero topzeira.
Eu sou o guarda-chuva da Britney Spears.
Eu sou o buraco antes da ratoeira no fim do corredor, enquanto um gato te persegue.
Eu sou a caneta que assina e não assassina teu nome social.
Eu não sou você.
Eu não sou concreto e tinta vermelha, no meio da natureza.
Eu não sou Diva.
Eu sou Tripa!
Performatividades Dissidentes - A Travesti
Márcie Vieira
O voo, o ninho, o ovo
renata bastos
Como será esse primeiro voo,esse primeiro bater de asas?
Com algumas asas ainda curtas em formação, outras mais longas e desajeitadas, umas coloridas e outras mais básicas acompanhadas com o sentimento do medo que assola alguém que tem o mundo à sua frente.
Ainda com a presença do acolhimento, da proteção envolvida pelo ninho feito de galhos, folhas e lixos que seus provedores construíram durante suas vivências e narrativas ao longo de suas vidas.
Como será esse voo que trará junto a ele a mais bela liberdade que o céu te permite a voar e descobrir as milhares de árvores da vida, do amor, folhas da angústia, molhadas pelas lágrimas de uma chuva, pelas sementes da esperança, como será?
Neste momento que é jogada para fora do ninho, pela sua própria mãe, que querendo te impulsionar
a mostrar a beleza deste sopro de sobrevivência, da liberdade das novas conquistas em acreditar que se pode tudo ao bater as asas na velocidade de seu coração.
Na selvageria com a força do vento que te bate na cara, e te faz flanar ou apenas cair e se erguer com essas mesmas asas que ainda não estão prontas para alcançar o infinito, rico e colorido de uma selva ou apenas o cinza de uma cidade que te suja e fortalece para um novo voo do amanhã com mais virtude.
Ao perder sua mãe, que te fecundou, alimentou , protegeu e te fez seguir com coragem para se proteger na solidão, batendo as asas em busca da onde pousar. E mais tarde voando em bando procurando ou inventando novas aventuras para poder voar mais alto e brincas entre flores, frutas, prédios disfarçados de montanhas, nuvens com cheiro de fumaça, voando atrás na mais bela primavera e se refrescando com a serenidade do outono.
Essa pássaro que durante o voo ganha a paciência que conquista com o conhecimento do tempo dos deuses egípcios, que se posiciona no galho para observar o verde, o prédio, as casas, as cobras, os urubus, as nuvens que cobrem o sol que irá iluminar a distância que almeja alcançar para logo mais voltar a pousar e a contemplar novamente o seu habitat.
Ou até mesmo aquele cantar de andorinha quando percebe o dançar das nuvens que avisa que vai garoar, o olhar que guarda a lembrança da onde tem flor para se alimentar, onde tem sombra para se refrescar, água onde possa beber e se banhar. Que seja na piscina sem crianças brincando, ou no bebedouro que fica na gaiola do teto, de portas abertas, parecendo uma armadilha, mas está pronto para ele entrar e sair quando tiver vontade de se lambuzar e se repousar.
Quando sua mãe te joga para a vida, tira seu ninho para mostrar que o mundo é maior que aqueles pequenos galhos ao seu redor, que te faz voar para um dia seu próprio ninho conquistar e construir com as ferramentas que o mundo te oferecerá.
Sua provedora de amor, de lar, de afeto que se vai, mas deixa na lembrança uma base sólida, um ninho seguro para que ela seja forte e pronta para enfrentar as tempestades e ventanias que estarão em sua vida, que se ela souber aproveitar encontrará a beleza que o arco-íris irá embelezar nos seus dias mais escuros.
Essa pássaro que é obrigada a ter seu primeiro voo sozinha, pensa nesta perda, como não uma expulsão do ninho, mas como construir sua própria história e ter seu próprio ninho.
Ninho com galhos, folhas, restos de outros ninhos, penas e plumas de outros pássaros que por lá voaram. Colhendo o que o mundo te oferece, com um resto que te faz acreditar que irá construir algo que ainda nem sabe o que é, nem em quais árvores, telhados, postes será. Mas sabe que precisará sobreviver para voar forte e criar este novo ninho para nele também criar seu ovo, sua cria, seu pássaro, sua herança.
Seu filhote que também quebrará a casca do ovo para ver a luz do sol reluzir no seu olhar, acompanhar filete a filete do ovo se quebrar, se espreguiçar e se empinar para dar os meus primeiros passos nessa nova terra que culmina, renasce, seca, floresce e depois também será empurrado por ela, para dar seu primeiro voo.
Qual será seu nome, como serão suas penas? Como ele se constrói e se desconstrói durante essa passagem de tempo de ovo para voar?
Ela pensa por um instante que nem todos os pássaros conseguem quebrar seus ovos para ver o mundo, que alguns não conseguem bater as asas, não conseguem construir seus bandos e gangues para voar.
Que triste seria sem um ninho, sem um ovo, sem um voo.
Então com o passar das nuvens pelo sol, ela canta ao chamar seus parceiros e começa a novamente a construir seu lar e voar mais alto para encontrar as bases mais fortes para seu ninho montar, e nele chocar seu ovo com a esperança dele um dia se quebrar para sua herança voar.
E esse pássaro poderá cantar.
EM DIREÇÃO AO NORTE
Zara Dobura
Personagens:
Stephania - Travesti, 30 e poucos anos, cybergostosa, trabalha em uma feira, mas também recebe clientes nra própria casa
”Karmen” - Androide Robô das empresas Hall Corporation, formato de criança, sem gênero, idade ou qualquer referência de humanidade.
CENA 1 - INT. CASA DE STEPHANIA - DIA
Stephania de costas acorda em sua cama bagunçada. Seu quarto é tomado pelo mofo, sujeira de cinza, latas, embalagens de produtos processados, pacotes de camisinha, roupas sujas e inúmeros objetos espalhados entre a cama, o chão e uma escrivaninha de madeira podre. Ela se espreguiça quase como se esquecesse do mundo. Após alguns segundos de silêncio, Stephania se levanta em um sobressalto. Seu rosto porta maquiagem e o batom borrados, em uma expressão de preocupação, ela encara a escrivaninha. Sobre ela há um cinzeiro e algumas notas de 50. Stephania respira aliviada, enquanto faz uma cara safada.
STEPHANIA
Hmmm... Acho bom mesmo… Filho da puta.
Stephania se levanta e abre levemente a cortina verde musgo que separa seu quarto da pequena sala de sua casa. Sentada no sofá esburacado e sem espuma encontra-se Karmen, de camisa larga e um short florido. Karmen segura uma caneca de porcelana enquanto porta entre os dedos da outra mão um pirulito de coração. Parece atônite encarando a TV, mesmo que não entenda a maioria das coisas que se passam.
NOTICIÁRIO DA TELEVISÃO
E o mundo não parece mais ser o mesmo… Especialistas da área de saúde não sabem mensurar por quanto tempo o Lockdown global continuará ao redor do mundo. Aqui no nosso país, um grande êxodo acontece em direção ao extremo norte, onde a empresa HALL CORPORATION promete abrigo e segurança para uma grande parcela da população. Já são mais de 200 mil mor…
Stephania irrompe na sala e pega o controle remoto na mão, trocando de canal.
STEPHANIA
Bom dia My little sunshine, isso é hora de assistir desgraça?
KARMEN
É que eu não tava achando o desenho, Mommy!
Stephania para de procurar um canal, e encara Karmen.
STEPHANIA (envergonhada)
Karmen! Já te disse para você não me chama assim. Pra você, eu sou sua mamãe, ok? Ma-mãe.
KARMEN
Tá bom, mommy…
Stephania suspira contrariada e continua a mudar de canal.
NOTICIÁRIO DA TELEVISÃO
(Comentários de Stephania)
Líder rebelde Egípcio da A.M.L é preso juntamente com outros.. (Não!) Onde está o Hall? Hoje fazem 70 anos desde que o primeiro hall assassinou sua dona e desapareceu sem deixar vestí..(CREDO!)... Produtos Arcturiana, satisfação tot.. (Pera, isso é permitido passar na televisão?) Fofoca quente do dia, A drag-clown mais famosa do mundo YAYA GOGA (Ah agora sim, Observe Karmen, a inspiração e referência pra sua personalidade!) é conhecida por manter sua grife na passarela por anos, por ser a conta mais seguida no cyberespaço, e por apresentar o programa de Drag que todes tanto amam! Mas aposto que ninguém estava preparade para saber que YAYA GOGA, também se AFOGA! HA, HA, HÁ! A estrelinha mais querida do estrelato não só financiou uma
série de produções pornográficas que ferem todos os direitos robo-humanos, como também tinha seu próprio mercado oculto de orgãos, mais de 48 crimes estão sendo processados em seu nom.. (Ah, caralho, dá um tempo. Não tem nada para fingir que o mundo é belo e feliz, aqui?) Ah aventura, vai começar, todos juntos.. (Perfeito!).
Stephania assustada com as notícias corre até a pia para tomar uma pílula de remédio e não encontra. Nos armários busca por um chá, mas as prateleiras também estão vazias, revira um pote de café que só tem farelos. Ela puxa um cigarro, olha para Karmen, que imita seu gesto com o pirulito.
STEPHANIA
(Susurrando enquanto larga o cigarro)
Merda… Olha o exemplo
(Para Karmen)
Ta tomando o que aí meu amor?
KARMEN
Nada, mamãe!
STEPHANIA
Okeiii... Sua estrainha. Você sabe que o café da manhã é a refeição mais importante do diaaaa, porque não me chamou? Já são quase onze e meia!
KARMEN
Eu ia, mas tinha aquele homem na cama, eu tenho medo dele, eli ronca, ROINNNCC!
STEPHANIA
(Falando alto enquanto calça botas pretas, veste um casaco fino e põem uma saia)
Aquele efe-de-pe tava aqui depois das oito? Desculpa bebê, já tinha avisado para aquele… FUNCIONÁRIO DO POSTINHO! Que tem uma princesa aqui em casa, e não é para ele assustar você.(Pausa)Ele não mexeu com você, Né?
KARMEN
Não mãe, só perguntou se podia chupar o pilulito, Eu disse: não, é meuuu! ai ele riu e bateu a porta BLAM!
(Karmen pula no sofá)
STEPHANIA
Podeixá meu anjo. Ele não entra mais aqui. E não vai mais chupar pirulito nenhum. Oh, agora assiste aí o desenho vou compra coisa pro almoço e o seu leite, Tá?
KARMEN
Tá. Mas você vai sair assim mãe? (mordendo o pirulito).
STEPHANIA
Uaiii, assim como? Toda feia e cagada, ou Linda, incrível, maravilhosa e bereguedein dein tchum tchum (Se aproxima de Karmen e enche ela de cócegas).
Karmen começa a rir e solta o pirulito da boca.
KARMEN
AI, AI, AI MÃE! LINDA, HAHA, LINDA HA, HA, HA!
As duas se abraçam em silêncio.
KARMEN
Mãe… O mundo ta acabando?
Stephania encara ela por alguns segundos, como se sentisse uma facada no peito, depois sorri.
STEPHANIA.
Não amore, não tá não.
Stephania beija Karmen na testa, pega sua bolsa e sai pela porta.
FADE OUT.
Zara Dobura
Em embrionária vida que posta fui
Em pictóricos momentos vislumbrei-me lagarta,
Ante o movimento em que gestei, ligeira,
Não advinda do ventre, mas da barriga pinçada.
Do tapa fez-se choro,
Que em vida, fez-me vasta,
Da cor fez-se menino,
Do sexo fez-me casta.
Sem antes brandir palavras,
Empurraram-me omoplatas,
Cuspiram-me suas ordens,
Reduziram-me a glande.
Podando os meus desvios,
Meus vícios tornam-me ingrata,
É como quebrar minhas asas
E esperar que ainda ande.
Seja rústico, grosso,
Músculo, carne, osso,
E só! Não pense em sentir dó.
Engula a emoção, sabendo que é controverso.
A jugular prendeu seu nó, mesmo que o peso desse mundo
Não caiba em um verso,
Latente chumbo, profundo
A cada passo que se crava nesse solo,
fere o ferro injusto,
É etiqueta, questão de suprimir,
Emboasdosesdeestressepranãoexplodirporserassim.
Porque se ASSIM o for, virá a virar chacota,
Cada boiola dito na escola, em casa torna-se
revolta.
Pois quem lhe
cerca a volta,
jamais quer permitir,
fluir
subir,
fugir,
O meu azul já virou rosa e agora quer
((((( Ecos))))) da cabeça, QUEM é que me escuta?
Parecia “tão certinho” no começo... e agora acham que eu
“Sou bagunça”? Puta, só,por não agradar.
Minha poética dworsal já somou cinco,
E eu não sou capaz de dividir, ou sequer mesmo de parar.
Ritmo
quente,
como
o sangue
que escorreu
por ser em
dois quebrada,
Diante do espelho, da miragem mal contada.
Cabelo a r r a n c a d o, ar descompassado
Fito o meu rosto, com a mais triste calma.
< ( ) > < ( ) >
Da cabeça até os pés, berrei com os olhos,
Resta só a faca, cortei com a alma,
Laciando-me em lástima, lá fora vejo escudos,
Pingando a última lágrima, aqui dentro sinto escuro.
No fim só uma afetada...Lida como afetado,
Eu cruzei a contramão de macho, mano, garoto e viado.E
mesmo revestindo a minha casca, pintando coroas,
Nem de perto me molhou garoa que chamasse de garota.
Só pra me encontrar, deitar em canto quieto,
Achar em céu aberto um teto em meio a tanto desafeto,
Alguém que me entenda, ou só pretenda entender,
Que enquanto teço meu casulo, não me deixe padecer.
A glande reduzida,
Das ordens a ser cumpridas,
De omoplatas empurradas,
E palavras não brandidas.
Castrada fiz-me de sexo,
De menino fez-me a cor,
De vasta fiz-me a vida,
Do choro fez-me a dor.
Não da barriga cortada, mas advinda do ventre,
Ante o movimento em que lentamente dei-me morta
Em meu disfórico momento vislumbrei-me moça,
Na embrionária vida em que nunca me foi posta.
Posfácio
Coleção Traviarcado
Renata Carvalho
A coleção “Traviarcado” tem como objetivo levar para todas as pessoas, questões importantes acerca da transexualidade/ travestilidade e suas pluralidades, de forma nítida, didática e acessível, mas também, para.a disseminação da produção intelectual de pessoas trans/ travestis, além de, contribuir com a memória.
Inspirada na coleção “Feminismos Plurais” com coordenação de Djamila Ribeiro, Traviarcado é uma série de livros da editora “Monstra”, com coordenação minha – sou transpóloga - que juntes com outres pensadores e intelectuais trans/travestis, abordaremos assuntos como: representatividade, história, política, transcestralidade, cisgeneridade, transfobia estrutural e recreativa, assim como, as interseccionalidades do corpo trans/travesti: negro, gordo, positivo, com deficiência, originário e envelhecido, de forma a ampliar e alargar nossos conhecimentos e percepções sobre corpos trans/travestis.
Há no imaginário do senso comum brasileiro uma construção social, midiática, patológica, criminal, hiper-sexualizante, estereotipada e religiosa do que é ser uma pessoa trans/travesti. A partir desta constatação, a coleção “Traviarcado” visa ser mais uma ferramenta na (re) construção desse imagético e no combate à transfobia estrutural.
“Traviarcado” quer recontar/revisitar/debater/mostrar diferentes perspectivas, mas a partir do olhar transvestigênere, propondo a naturalização dessas vivências, para juntes, de forma ética, criarmos futuros desejáveis.
“Tem um ponto de marca, que dele, não se pode mais
voltar para trás”
(Grande Sertão Veredas)
“Escrevivências” — em homenagem à Conceição Evaristo, que cunhou essa palavra — é um nascer da escrita do cotidiano, das lembranças, das experiências da vida e do seu povo. Escrever vivências para incomodar a hegemonia em seus sonos injustos.
E para (re)escrever essas narrativas, precisamos assumir a escrita, ou descobri-la. Este livro é resultado de uma oficina criativa de escrita para pessoas trans/travestis — promovida pela Casa 1 e a editora “Monstra”, em parceria com o Publication Studio São Paulo — ministrada pelo ator, dramaturgo e professor Daniel Veiga, que junto com es oficineires: Afro Queer, Bruna Pires, Cae Beck, C. Hanada, Cae Ferraroni, Lira Queiroz, Márcie Vieira, Renata Bastos e Zara Dobura, desenvolveram as escrevivências transvestigêneres aqui apresentadas.
TRAVIARCADO é um grito em palavras para libertação e emancipação coletiva.
E do alto dos meus silicones anúncio:
Bem vindes ao Traviarcado
Evoé.
.
Arte da Capa: Lira Queiroz
Projeto gráfico realizado coletivamente por Afro Queer, Bruna Pires, Cae Beck, C. Hanada, Gaê Ferraroni, Lira Queiroz, Márcie Vieira, Renata Bastos e Zara Dobura com apoio de Laura Daviña (estúdio PSSP).
As fontes utilizadas foram: Adrenalina (de Gustavo Lassala), Cirrus Cumulus (de Clara Sambot), Courier (de Howard Kettler), Hand Test (de Érico Lebedenco), Libertinus Serif, Montagna (de Alejandra Rodriguez), Movement (de María Ramos), Pompiere (de Karolina Lach) e Trueno (de Julieta Ulanovsky),
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
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Escrevivências : custuras poéticas / organização
Renata Carvalho , Daniel Veiga. -- 1. ed. -- São Paulo :
Casa 1 : Editora Monstra, 2021. -- (Traviarcado ; 1)
ISBN 978-65-992897-1-2
1. Ficção brasileira I. Carvalho, Renata. II. Veiga, Daniel.
III. Série.
21-57641 CDD-B869.3
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Índices para catálogo sistemático:
1. Ficção : Literatura brasileira B869.3
Aline Graziele Benitez - Bibliotecária - CRB-1/3129
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Áudio livro narrado peles autories:
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