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escritas de si(da)

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escritas de si(da)

Alan

Andrea P. Ferrara

Gabriela Fonseca

Laura Daviña

Laura Ribeiro

Leandro Noronha da Fonseca

Marcos Tolentino

Rafa Roller

Rafuska Queiroz

Tiago Sales

Tiago Cesar

Victor Bebiano ( VIBE )

logos

sumário

8apresentação Cadernos são livros que a história

      não viu | Editora Monstra


10prefácio O corpo do HIV/aids é a palavra

        Leandro Noronha da Fonseca


17   1997

18   A mão que dá corda no tempo

        Andrea P. Ferrara


19   Tia Sida

22   Cargas

23   Quando eu saio de cabelo preso

25   Sem Título

        Laura Ribeiro


28   Café da tarde

29   Você sabe guardar segredo?

31   Tem cura?

33   Histórias de um outro tempo  

        Gabriela Fonseca


36   Não foi fácil

39   Ela me tocou pela primeira vez

41   (in)Vizíveis

43   Exposta em rede

        Rafuska Queiroz


50   Tecida

        Laura Daviña


51   Efavirenz  

        Alan

52   Um vírus em nós

54   Composição

        Leandro Noronha da Fonseca


55   Mudança

57   Contágio

58   Espera

60   PrEP

61   Cotidiano insólito

65   Cura

        Tiago Sales


67   Olhe pra mim

        Victor Bebiano ( VIBE )


69   Último encontro

74   Três pares de olhos

        Rafa Roller


80   Abraço

81   Aos trinta

        Tiago Cesar


82   Alguma coisa aconteceu com você

85   COMPOSIÇÃO

        Marcos Tolentino


86posfácio Ninguém é tão alguém que não

        precise de ninguém | Andrea P. Ferrara,

       Bruno O., Jjoão Paes e Marcos Tolentino


92quem escreveu

CADERNOS

SÃO LIVROS
QUE A HISTÓRIA

NÃO VIU



O projeto CADERNOS

da Editora Monstra e Casa 1

A partir de uma reflexão acerca dos espaços que a História não consegue enxergar, ou mesmo não se interessa por isso, e do chão infraordinário que é capaz de narrar a si próprio, e que portanto disputa a ideia de Oficialidade dessa História, surgiu o projeto CADERNOS.

Promovido pela Editora Monstra e pela Casa 1, CADERNOS é um método de publicação que visa fomentar, através da criação de um espaço íntimo e coletivo, a produção literária que tem na vivência individual (logo social, política, cultural) sua principal matéria. Tendo como lastro o conceito de “Escrevivência”, cunhado pela escritora Conceição Evaristo, o projeto acredita na potência da escrita como ferramenta de afirmação de mundos e pensa o livro como um meio que pode enfrentar o circuito hegemônico de um tipo de saber, este estruturado também por outros livros.

Em suas edições, CADERNOS conta com a parceria da artista gráfica Laura Daviña, do PS São Paulo e Parquinho Gráfico e a orientação de uma pessoa convidada para mediar (ou seria inspirar?) os encontros. Neste “Escritas de si(da)”, foi Leandro Noronha quem fez, lindamente, esta tarefa.

Anteriormente em 2021, na ocasião da IV Semana da Visibilidade Trans da Casa 1, foi lançado “Escrevivências: CUSturas poéticas”, a primeira experiência desta forma de trabalho. Com mediação do dramaturgo Daniel Veiga, 9 autoras e autores escreveram contos, poemas, dramaturgias, roteiros, etc. dando origem a um livro múltiplo, pulsante, cheio de vida, que agora vem sendo distribuído gratuitamente ao público e espaços, centros culturais e bibliotecas parceiras.

O corpo do
HIV/aids
é a palavra


Leandro Noronha da Fonseca

A palavra é força motriz das significações em torno do HIV/aids. Sem a palavra, o HIV/aids não existiria para além de suas dimensões biológicas. Com a palavra, ergue-se o HIV/aids a um patamar social em que dele é feito um instrumento político de afastamentos e privações. A linguagem cria e destrói pontes, gera e assassina pertencimentos, molha e queima os contornos da comunicação.

O HIV/aids ganha corpo por meio da palavra. Antes restrito aos microscópios de médicos e cientistas, se expande massivamente pela imprensa, invadindo televisões, revistas e rádios que evangelizaram sociedades inteiras com a imagem corporalizada da Morte.

Antes que jornalistas pudessem fabricar o HIV/aids pela palavra, foi nos laboratórios em que surgiu o embrião dos sentidos que giram em torno do vírus e da doença até hoje. Ao criarem termos como câncer gay ou gay-related immune deficiency, médicos e cientistas, do alto de suas razões ocidentais, se utilizaram da suposta neutralidade da ciência para marcar corpos, identidades e desejos. Surge, daí, um termo horrível, segregador e desumano: “grupos de risco”. Aos “grupos de risco” resta a sorte do amanhã. Tornam-se eles os Outros, intrusos que perversamente corrompem a ordem da natureza construída por poucos.

O pesquisador brasileiro Marcelo Secron Bessa afirma que existiu uma “epidemia discursiva” no surgimento do HIV/aids. A ciência queria dizer o que era o HIV/aids. A imprensa queria dizer o que era o HIV/aids. A igreja queria dizer o que era o HIV/aids. Cada instituição social, a seu modo, deu vida ao HIV/aids, tal qual o vemos ainda hoje. E foi por meio

da palavra que isso pôde acontecer. E ainda acontece.

Diante disso, parece-nos que a palavra é nossa fiel inimiga. Não. A palavra é barro e costela do ser humano, criação potencial, arma ou armadura na disputa de narrativas. Os discursos sobre o HIV/aids elaborados pelas ciências médicas, disseminados pela imprensa e extremados pelo fundamentalismo religioso, encontram na história uma hegemonia difícil
de ser rompida. Mas não para a arte.

A literatura, enquanto forma de conhecimento, tem a função de construir estrutura e significado e também a de manifestar as expressões humanas, individuais ou coletivas. Enquanto expressão humana, a literatura é objeto de conhecimento singular, trabalhando criativamente com aspectos mais subjetivos da condição humana. Enquanto objeto artístico, a obra literária atravessa e por vezes transcende os discursos hegemônicos sobre o HIV/aids. É necessário parir outras narrativas, outros caminhos para a imagem do HIV/aids, fazer perceber a existência de outras vozes não propagadas pelas propagandas do medo.

A publicação Poéticas de vida: escritas de si(da) foi construída por pessoas que vivem ou que não vivem com HIV/aids, mas que carregam no sangue e na alma a mesma vontade de curar os estigmas ainda vinculados ao vírus e à doença. São poemas, contos e outros textos que transitam entre gêneros
literários e artísticos, e que buscam oferecer ao leitor sentidos e discursos afastados das sombras do medo, porque nenhum bisturi ou estetoscópio é capaz de abrir ou sentir as profundezas do HIV/aids. A arte? Sim.

A arte utiliza-se da palavra para escrever vida,
para reafirmar o respiro da existência, o calor da

humanidade incrustado na complexidade humana. O que não se fala, não existe: o ser humano sempre teve necessidade de nomear as coisas ao seu redor. E talvez seja esta necessidade a semente que concebeu o presente livro: nomear para existir. O célebre slogan SILENCE = DEATH, do grupo ativista norte-americano Act Up, bem resume o propósito: romper o silêncio em torno do HIV/aids. Com o rompimento do silêncio, abrem-se fissuras para a passagem da reflexão e do conhecimento, isto é, da vida.

A literatura brasileira sobre HIV/aids acompanhou o decurso histórico da epidemia. A dor e o medo protagonizaram as produções literárias dos anos de 1980 e 1990, período em que o diagnóstico positivo para o HIV era quase sempre uma sentença de morte. Com o surgimento da terapia antirretroviral de alta potência, reduz-se a mortalidade e possibilita-se que pessoas vivendo com o vírus dêem continuidade aos seus projetos de vida. A partir de então, a arte passa a ter outros olhares sobre a questão: olhares mais próximos da vida “cronificada”, sim, mas também das complexidades que ainda existem quando falamos ou pensamos sobre HIV/aids.

Os textos aqui reunidos integram este cenário contemporâneo de novas possibilidades de vida. De distintos modos e meios, as escritoras e escritores que compõem a presente publicação constroem uma miríade de representações. Além da pluralidade estética de cada uma das obras, um dos pontos mais enriquecedores deste livro são as formas com que autoras e autores visam representar o HIV/aids. Muitos dos textos partem de elementos materiais do universo biomédico, como bulas e composições de

medicamentos, mas que não percorrem o lugar comum do HIV/aids. Os elementos biomédicos, aqui, são muito mais do que elementos biomédicos: são metáforas para os limites e as possibilidades do mundo, para as dores e os dissabores da vivência posithiva, em que viver mostra-se muito mais do que a mera ingestão de comprimidos: a vida pulsa para além das bulas medicamentosas. E estes textos são exemplos vivos dessa sensibilidade.

Ainda que o surgimento da terapia antirretroviral de alta potência tenha possibilitado expressivos progressos no cenário biomédico do HIV/aids, os avanços sociais estão em descompasso com os avanços científicos. Falar sobre HIV/aids ainda é um tabu, principalmente em um país que, cada vez mais, mergulha no obscurantismo e no conservadorismo religioso. Repito: o que não se fala, não existe. E é preciso fazer existir o HIV/aids neste complexo tecido social, torná-lo um assunto cotidiano e afas­tado dos moralismos. Negar a sua existência é também negar a sua problemática. Ainda esperamos a cura da aids e do estigma.

O corpo do HIV/aids é a palavra. Se, nestas quatro décadas de epidemia, a palavra foi a principal via de construção do estigma, do preconceito e da discriminação, os poemas, contos e outros textos que compõem o livro Poéticas de vida: escritas de si(da) contribuem para a formação de outros corpos, outros discursos, outras imagens, outras possibilidades de ver, pensar e falar o HIV/aids. As escritoras e escritores aqui reunidos podem não partilhar da mesma sorologia — o que é algo belo e potente, tendo em vista que este não é um assunto restrito às pessoas vivendo com HIV/aids —, mas carregam na mente e nas palavras idêntica vontade de oferecer às leitoras e leitores, e à

sociedade de modo geral, uma possibilidade de se pensar diferente.

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1997


Andrea P. Ferrara



Algodão

Álcool

Garrote

Luvas

Scalp 23

Micropore

Equipo

Gamaglobulina


Ao chegar na cama

Olhos arregalados

Uma criança minúscula

Com um ursinho ao lado


Braço garroteado

Veia puncionada

Gotejamento


Um sorriso tímido

Uma vozinha baixa:

Meu ursinho não vai tomar remédio?


Frasco de soro vazio

Equipo

Micropore


Um sorriso de cumplicidade paira no ar...

A mão que dá
corda no tempo


Andrea P. Ferrara



Estudar, trabalhar, namorar

Viver

Dançar, conversar, beber

Viver

Brisar, ler, viajar

Viver

De repente, um teste positivo.

Mundo em câmera lenta

Estudar, trabalhar, namorar?

Viver?

Dançar, correr, beber?

Viver?

Brisar, ler, viajar?

Viver?

Medo, ansiedade, desespero

Mundo suspenso no pensamento.

Casinha verde, braços abertos para um abraço,

Acolhimento, escuta...

O tempo passa

e o mundo volta a girar.

Tia Sida


Laura Ribeiro



Encontrou tia Sida aos 17 anos e provavelmente às 4h da manhã de um sábado babado depois de muito marafo chulo, um padezin e uns tragos. Meses depois descobriu todo o bafo:


— Reagente.


Sinos tocaram, era um som de morte. Foram anos de remédios mal tomados, falta de acolhimento e descaso. Começou a entender que o maior coió era o do Estado.

Sinalizou melhora, mas caiu de cabeça no padê. Pulo de ponta, sem ver.

No meio de tudo um padre. Abusador, pedófilo e sem limites. De dentro do carro atravessando um incêndio na pista:


— Se a gente for, pelo menos a gente tá junto.


Maricona safada. A torturar enquanto ela pensava “um dia, seu puto, eu ainda te mato,”.


A família já não via direito, muito menos fazia as coisas das quais gostava.


— Acho que eu me tornei uma estranha pra mim. Não quero mais saber de padezin.


Então ele forçava, trazia pinos e pinos. Quando ela tentava sair, era remédio na comida, na bebida...o irmão até tentou alertar, mas o laudo

de esquizofrenia não a fez acreditar. Um dia ela acorda e decide que já não dá. Arrumou as malas, voltou pra casa da família e assim foi se readaptar. Foram mais alguns anos e ela se olhou no espelho. Mas dessa vez não foi só olhar, foi enxergar.


— Eu lembro todas as noites que eu dormia e pedia pra Deus me fazer menina. Será que eu posso ser mulher? Mas pra isso tem que ser bem amapoa, com peitinho, cabelão e uma bunda boa.


Que nada! Foi se envolver com uma galera que falava de feminismo, ficou passada.


— Num é que dá pra ser o que se é sem ser como os outros querem que a gente seja?


Pausa. Silêncio. A trava destrava.


Mais tarde ela se apaixonou por si mesma, encontrou uma rede de afeto e aprendeu o autocuidado. E nada disso se deu pela boa vontade do tal Estado. Foi mais uma daquelas histórias com “final feliz” que muito otário aplaude e toma como regra num mundo em que a exceção é escapar da morte.


— Tá vendo? Ela é travesti e tem HIV, mas conseguiu se dar bem na vida como qualquer cidadão.


A que custo?


Às vezes ela pensa que o que faltava era justamente esse pedaço da história em que a gente passa a se amar de verdade pra que então a gente deixe de se maltratar. E que isso não é responsabilidade só dela, mas de toda uma sociedade. A falta de acesso e conhecimento sobre a tia Sida é que fez com que ela não lidasse com ela direito. E ela queria muito que todo mundo tivesse essa oportunidade. A oportunidade única, fundamental e desafiadora que é PODER(-)SE AMAR+.

CARGAS


Laura Ribeiro



num trago

trago comigo o inimigo

o outro, o desconhecido


milímetros cúbicos de peso

pesa na alma

pesa no corpo

DNA, VHB, cópias barra ême-élis


o peso do microscópico

do ilegível por mim

daquilo que nem eu mesma sei como interpretar


me cubro em mantos de contenção

daquilo que não se contém depois de dito

do que não se pode proteger-se

com quantos miligramas se faz imune o não-ser?

como imunizar-se do que não é só vírus?


uma palavra, um olhar e pronto

me tornei vulnerável mesmo indetectável

Quando eu saio
de cabelo preso


Laura Ribeiro



Pode soar fútil no início, mas pra mim e muitas outras meninas: o cabelo importa.


Pras meninas trans o cabelo é camuflagem muitas vezes. É passar sem ser tão notada em meio ao corpos cis. São franjas, kanekalon, laces...


Uma vez um omizinho com quem me relacionei, me fez soltar meu cabelo enquanto a gente se beijava. Disse ele que eu ficava mais bonita, mais “feminina”. Não foi tão ruim quanto um outro que me mediu na cama do motel dizendo sobre as intervenções que eu podia fazer pra ficar mais bonita. “Você ainda não toma hormônios?”, pensei que ele ia pagar os mais de 100 reais mensais.


Eu comecei a não usar mais meu cabelo preso que botava em evidência o meu rosto. A linha do cabelo sempre camuflada pra não mostrar essa testa grande e os ângulos todos que me acusavam.


Uma outra vez foi uma amiga e foi pior. Tentou roubar coisa pra comer num mercado da cidade e teve o cabelo raspado no meio da rua sob a ação, o olhar e permissão de toda uma sociedade. Por quê? Ah...porque eles sabem como nos atingir. Agora falar de cabelo já não parece tão fútil.

Quantas são as mulheres da história que tiveram sua dignidade tirada pelo cabelo?


Pode ainda parecer fútil pra muita gente. Mas quando eu prendo meu cabelo eu boto minha cara no sol. Todos aqueles traços que me denunciam como travesti estão ali expostos.


Eu penso em resistência.


Eu penso em foda-se.


Que a cisgeneridade toda cis engula, cis vomite e cisploda!




Em memória de Nicoly Sabatiny

DESARME A BOMBA RELÓGIO


Laura Ribeiro



Hoje vou falar das dores e cores que o mundo nos traz

Conheço bem a dor sendo travesti

Mas minha rima tem q ser sagaz

Vou falar de quando eu tinha 17

De um vírus pequeno q eu não sabia q tinha tanta peso


A desinformação rola solta enquanto eu pago o preço

Olhares de dó só me causam desprezo

Um me beija ali, o outro diz q ama

Mas a verdade é outra quando me levam pra cama

O medo toma conta e o desespero reina

Como eu transo com uma trava aidética? Que neura


Na TV ninguém fala e nas escolas muito menos

E se eu não resisto, tudo fica por isso mesmo

Então me deu uma luz e alguns amigos se importaram

Mas eles ainda não sabem direito

Precisam estar mais informados


É foda ser didática toda vez que me relaciono com alguém

Ter que explicar toda a porra do HIV em troco de um afeto que não vale um vintém

A minha vida foi mudada sim, de dor eu entendo bem

Mas não deixo de mostrar minhas cores e se me pedem eu vou além

Não deixo um vírus microscópico dizer quem eu sou

Meu nome é Laura e tenho 30 anos. Sou HIV positivo. Me ame ou me deixe aonde estou.

Minha verdade precisa ser dita ou do contrário ninguém fala nada

Tô cansada de viver com isso e ser silenciada

Falo no feminino

Minha alma no gênero não pode ser enquadrada

E todos os dias da minha vida eu desço a quebrada

Lugar onde eu vivo e sei a necessidade da minha fala


Falar da minha condição que é a condição de muitas: eis a meta

Mas como falar pras pessoas sobre algo que nem as afeta?

Será mesmo q elas querem saber q com meus remédios tomados em dia transando comigo ninguém se infecta?

São tantas verdades pra serem ditas q eu tenho medo dessa porra ficar muito complexa


Mas segura q se você quiser mais informação a gente conversa

Então pega na minha mão, beija minha boca e toma da minha caneca

Ninguém vai morrer com a minha saliva

O HIV acha outros meios quando te pega


E não adianta tbm beijar a minha boca e fazer juras

Se quando é pra foder é outra q tu procura

Não me venha tbm falar do seu gosto famigerado

Seu gosto é socialmente construído e tá deixando de lado a mina trans e o gay efeminado

E se me deixam de lado só por ser bem garota

Imagina quando falo q sou positivo?

Pois é. É tanto. Fica foda insistir nisso.

A ideia do amor vai ficando pra trás cada vez mais

Como é que eu vou ser amada por alguém se já chegou num ponto q pra mim tanto faz?

Prefiro a minha masturbação ao teu falso tesão

Não adianta falar q me aceita se não é isso que eu sinto no meu coração

Suas atitudes vão mostrando quem vc é

E quem vc é não me agrada não

Não vou ser acusada de te passar qualquer doença e ficar calada

Você aponta o dedo pra mim, mas nunca fez um exame, transa com outros vinte sem camisinha e deve tá todo zoado

Da minha saúde eu cuido e faço isso o ano todo

Não é só de remédio que vive esse corpo

Eu quero os direitos de quem tem HIV sendo respeitados

Quero um psicólogo, nutricionista e o caralho

Quero pedir pra ficar com seu amigo sem ele precisar ser avisado

E não me venha com esse papo de cuidado!

Vocês avisam q alguém tem HIV pq tem esse preconceito encubado


No mais assim vou deixando minhas palavras

E repito: meu nome é Laura e sou positHIVa

Positividade pra quem sabe que HIV não é o fim da vida.

Café da tarde


Gabriela Fonseca



Te conheci há pouco

Me encantei por seu sorriso,

Seu olhar e seu jeito de jogar o cabelo

Te chamei pra um café lá em casa

Você veio

Conheceu a fachada

Meu rosto, minha voz, meu estilo

Gostei dos elogios que você fez ao parar na calçada

Te levei até a sala

Meus jeitos, manias, breves histórias

Adorei o seu olhar atencioso a cada detalhe

Conversamos tanto que paramos no quarto

Meu corpo, prazeres, meu tato

Até o banheiro você conheceu

Os piores lados, os erros do passado

Só não te apresentei aquele quarto trancado

No fundo da casa

Não estava pronta para a possibilidade de te perder

Quando visse o que tenho guardado, escondido

Naquela caixa lá no fundo

Ficou por isso mesmo

Foi bom te ter por aqui

Volte sempre, meu bem

Quem sabe, um dia desses

Eu te leve mais além

Você sabe guardar segredo?


Gabriela Fonseca



Era janeiro de 2018, pleno verão, as pessoas ziguezague- avam pelas ruas na sua incansável sede de viver.

Entre os milhares de passantes , havia um par em especial. Na verdade era só um casal, que de especial não tinha nada.

Se entretinham em todas as rotinas típicas de casais: cada um com seu emprego, se encontravam todos os dias e iam para casa, conversavam, comiam, transavam às vezes… – como eu disse, nada de especial por aqui.

Só uma peculiaridade: uma das partes guardava um segredo – um TERRÍVEL segredo. Às vezes isto tirava-lhe o sono, porém conseguia viver dia após dia, mantendo o pequeno diabo na escuridão. “Em hora de casamento, quando a relação se mostre sólida, aí eu revelo”, pensava.

E assim o verão se foi, o clima escureceu, as árvores amarelaram e o casal continuava firme em suas rotinas.

E então o tempo se arrastou e trouxe consigo o inverno e, com ele, o pedido – tão temido! Mas tão romântico, com joelhos ao chão, flores, anel, jantar… um sonho que só!

Naquela noite, havia de contar.

Deitaram-se à cama, olhos de um nos olhos de outro, enfim o noivado concretizado.

Nessa calmaria, tomou coragem, virou e encarou seu par:

Tenho um segredo, preciso desabafar… Acontece que carrego comigo uma bagagem que peguei de um relacionamento passado… Não é nada demais, mas eu preciso contar!

Eu…

Tenho um tique, estalo os dedos sem pensar! – disse, fechando os olhos.

Mas não se preocupe, eu tomo meus remédios e tenho certeza que você não vai pegar! – completou aos soluços, temendo uma reação.

O ar era denso nos segundos que antecederam a resposta de seu par e tudo o que se ouviu foi um estalar de dedos, que puxou outro e mais outro…

Então seu par pôs-se a chorar:

Desculpe, mas não posso continuar! Tenho medo! E se algum dia a terapia falhar e, em um estalo, você me matar? Assim como pegou de seu ex, também pode me passar!

Choro.

Desalento.

Fim.

Tem cura?


Gabriela Fonseca



Onde estão os remédios

que curam a dor do viver?

só me receitaram drogas

para tratar a infecção pelo HIV


Três comprimidos ao dia

vai ficar tudo bem

só evite ingerir de estômago vazio

e procure andar com pessoas de bem


Cuidado com a superdosagem

Até 1200 mg o corpo aguenta

Mas quantos ml de choro a gente pode

segurar na garganta?


Me alertaram muito

para os efeitos:

náuseas,

tontura,

icterícia,

redistribuição de gordura,

sonolência…


Ainda por cima me disseram

que não havia cura

e que eu deveria

engolir a frescura

Só não fui avisada

do peso no coração

ao me desnudar ao olhar

de quem julga sem razão


Será que para o estigma

há remédio

ou cura?

Histórias de um outro tempo


Gabriela Fonseca



Dizem as lendas que em um tempo antigo, ninguém sobrevivia sem ao menos uma pílula. Havia de tudo: antiácidos, anti histamínicos, ansiolíticos, antidepressivos, antiespasmódicos, analgésicos…

No cerne desta sociedade surgiu uma velha senhora que conseguiu sobreviver sem uma pílula sequer. Diziam que a senhora era enviada pelos deuses – da vida ou da morte – e podia ler o futuro através das pílulas.

Eu sempre fui cético quanto a este tipo de lendas, mas passei a acreditar ao ouvir os relatos de meu avô.

Certo dia, após um almoço de família, naquele momento em que todos se encostam em algum canto – fartos de comer e falar – para refletir a vida, sentei-me aos pés da poltrona do velho.

Ele, sem muito mais energia, com seus 97 anos, tocou minha cabeça devagar e se pôs a me contar uma história, daquele jeito que os velhos sempre fazem, com uma seriedade e imponência que nos gelam a espinha e até fazem calar as nossas cordas vocais.

“Sabe filho, não sei se você já ouviu falar que antigamente havia remédios para tudo e toda pessoa, nova ou velha, tomava ao menos um comprimido ao dia. Eu fazia parte disso. Mas olhe, no meu caso eram quatro – mostrou-me quatro dedos de sua mão ossuda – três dos quais me davam uma baita preocupação.

Nesses tempos, lá no interior, rezava a lenda que havia uma velha senhora que vivia sem nenhuma pílula. eu e meu velho ceticismo nos recusamos a acreditar na

balela – é, talvez eu tenha a quem puxar o ceticismo afinal – mas certa vez eu e meus amigos fomos de viagem à cidadela e acabamos por conhecer a tal senhora.

Sabe, esses remédios que o vô tomava eram para uma antiga síndrome, que até então não tinha cura e sob a qual pairava uma nuvem densa de preconceitos e medos.

Então, quando a senhora disse que saberia dizer nossos futuros usando as pílulas que tomávamos, fiquei espantado, temeroso e, claro, cético, afinal, se ela não tomava nenhuma pílula, como ia saber interagir com elas, né?”

Mas a curiosidade foi maior a acabei por aceitar.

Enquanto ela tava lá se ajeitando na mesinha, com todos os seus oitenta e tantos anos, contou um pouquinho de sua história: costumava ser enfermeira e cuidava de todo tipo de doenças, e dizia que nem ela sabia o porquê de não ter se acometido de nada. Como conhecedora das ciências ela sabia que, ao passar dos anos, torna-se mais propenso a cair e adoecer, mas que há mistérios no mundo que a ciência não sabe explicar, como esse seu dom. Ela jurava que, ao dispor as pílulas ao acaso, ela podia ler o futuro da pessoa, claro como um livro aberto com letras garrafais.

Sentei-me então à sua frente, em uma cadeirinha das antigas Casas Bahia e entreguei-a minhas pílulas – podia ouvir meus amigos cochichando do lado de fora à espera de sua vez – eram quatro pílulas:

Uma azul e vermelha, uma grande e amarela, uma branca, estreita e comprida e uma pequenina, vermelha e branca. De todas, as três primeiras me faziam mais apreensivo.

Ela pegou todas na mão esquerda em um punhado assim – mostrou-me em suas mãos manchadas pelo

tempo – e jogou-as sobre a mesa de vidro. Nunca vou me esquecer do som que fizeram

Ao contrário do que esperava, a senhora me olhou sorrindo e, ao ver seu sorriso, meu coração palpitou.

Das palavras que ela me falou eu nunca me esqueci, filho: Você acha que vai morrer jovem, né? Mas saiba que as pílulas dizem o contrário, cê vai viver, meu filho, e como vai! Pode se preparar, pois vai conhecer bem seus netos e bisnetos, vai ver ainda muita doçura e amargor na vida, mas vai sobreviver. E essas pílulas aqui não são pra sempre, há de chegar o dia de não precisar mais delas. Sei que parece impossível agora, mas daqui a 70 anos, você vai ser outro! Vai olhar para trás, esbanjando saúde, e se lembrar deste dia. Vai ter a sua cura, seu amor, seu sucesso!

Foi exatamente isso, filho, que ela disse. Quando saí, não sabia muito bem onde estava ou que horas eram. Sentei-me no carro e aguardei os outros. A viagem de volta foi em total silêncio. Todos fomos impactados.

Até aqui, meu filho, eu segui duvidando da velha, hoje já finada, mas após 70 anos, aqui estou eu, esbanjando saúde. E a velha síndrome da imunodeficiência adquirida, baita nome chato, é só mais uma página da história.

No final, eu acho que fui feliz.”

Olhei para o velho e ele estava ali sentado, com os braços cruzados, leve sorriso no rosto e uma expressão de paz.

Sem querer incomodar, deixei-o estar.

Questionei meu próprio ceticismo naquele dia, talvez realmente haja coisas que a ciência não pode explicar.

Não foi fácil


Rafuska Queiroz



Sempre fingi ser normal

Acreditar que poderia tudo!


Mas eu fingia, para enganar-me

Era uma tentativa de viver bem


Vez ou outra os meus partiam

Foi diminuindo aquela bagunça

No corredor das quintas pelas manhã


Foram esvaziando...

Quando percebi restávamos poucos...

Que pouco a pouco tentavam sobreviver


Não só, há um pequeno ser

Tentavam sobreviver o viver

Não sei eles, mas eu fingia ser forte


Inúmeras vezes me sentia só

Mesmo tendo família

Tendo “tudo”

“A Rafa sempre tinha tudo”


Não tinha o que me libertasse do medo

Eu me escondia dos meus próprios pensamentos


Eu iria morrer antes de envelhecer

Não me via velha

(ainda estou no processo de projeção no futuro)

Passei a querer provar a mim mesma que eu não tinha limites

Mas tinha, mas fingia


Eu tinha medo de não ser capaz

Sofria com dores, quieta!


Eu era forte (fingimento!)

Fui aprendendo a fingir bem

Cresci nesse mundo enganando-me


Até que cansei, passei a tentar me ouvir por dentro

Me permiti algumas coisas


(quase desisti de mim mesma)


Era uma louca sozinha no mundo

Passei a mentir para o mundo

Era a menina forte e guerreira


Sorria enquanto queria chorar

Vivi nesse casulo por anos

Fui amadurecendo um amor próprio


Fui me entendendo aos poucos

Demorou, mas consegui!

Fui vencendo meus medos


(não foi fácil)


Ainda tenho tentando não mentir pra mim

Venho tentando me permitir ser frágil

Compartilhar minhas dores

Para quem está tentando se dar direito:

Ser “exemplo” é um tanto difícil

Mas tenha alguém que você confie para compartilhar!


Seu “eu” quase que por completo é incrível

Acho que aconteceu no tempo certo


Sem eu procurar, sem eu esperar

Em um ano tão complicado

O Amor chegou, para que eu parasse de fingir


E também fechei algo que eu não acreditava

Mas fingia acreditar que era possível


(me formeiiiiiiiiiiiiiiiiii)


Acho que estou vivendo uma vida agora

Me libertei de um casulo no qual eu me prendi


Não sei se foi acaso

Nem sei bem...

Mas nunca me senti tão feliz por dentro


E na real nem sei se tenho direito a essa felicidade

Pois é, tanta coisa ruim acontecendo


Eu tenho planos, tenho sonhos, quero viver mais!


Não quero me sentir só e muito menos fingindo ser forte.

Quero sentir tudo em vários momentos


Mas por favor que seja do lado de quem me faz sentir-me

EU, somente eu”

Ela me tocou
pela primeira vez


Rafuska Queiroz



O medo e a insegurança estavam ali

O beijo doce repleto de tensão

As mãos percorriam

As mãos deciam

No teu corpo

No meu corpo

Minhas mãos na sua

Pele, perna, pêlos

Sentia seu desejo

Havia calor

Havia suor

Havia tensão

Corpos colados

Pele a pele

Ela sentou

Me chamou

“Vem amor”

Meu coração não só acelerou

Chegamos ali

Estamos ali

Ela me deitou

Me tocou

Me beijou

Língua, dedo, desejo

Corpo, coxa, seios

- Amor?

[O medo não travou]

Ela me tocou não só uma

Duas, três, quatro vezes

Ali era só

eu e ela

Nó de nós

Troca de fluidos

Desejos, gozo, amor

O medo era de não sorrir

Sorrimos, sentimos

Deitamos ali

Nuas, abraçadas

Ausentes de qualquer medo

A tensão?

Era de mais de 220 volts percorrendo em nós…

(in)Visíveis


Rafuska Queiroz



Nós!

Quem somos?

Filhos da SIDA!

Órfãos da AIDS!

Nós!

Onde estamos?

Esquecidos?

Escondidos?

Subnotificados!

Nó de nós

Entalados

Engolimos tanto!

Comprimidos

    Desempregos

        Solidão

            Dores

        Aflições

    Ausências

Discriminações

Cadê nós?

Onde estamos?

Quantos somos?

Quantos nós somos?

10, 9, 8. 7…

Alguém sabe daquele menino simpático que tinha um sorriso único?

SIDA!

Cida?

AIDS!

(silêncio)


Quem um dia apresentará o dado de existência dos filhos da SIDA?


(in)visíveis, (r)existimos até onde conseguirmos ir com nossos sonhos!

Exposta em rede


Rafuska Queiroz



Post em 1º de dezembro de 2016 - Um dos meus maiores segredos: Foi preciso encarar a Aids!


(Hoje é um dia qualquer para muitas pessoas, mas gostaria de pedir um favor: Faça dele um dia de luta! E se quiser leia esse texto!)


Hoje é o dia Mundial de Luta contra a Aids, mas acredite, eu não só luto eu encaro ela há 25 anos. O ativismo me escolheu por acaso, eu com meus quinze anos nem tinha ideia do quanto isso mudaria minha vida e de muitas pessoas que conheceria, no presencial e no virtual, foi nesse período que descobri o “dom” de acolher, de ter empatia, de amar ao próximo e o grande poder que uma troca de vivência tem/faz. Eu que mal sabia a arma secreta de um “oi, como você está hoje?”, para aqueles que não tinham com quem falar das suas dores, seus medos, seus planos mudados por um REAGENTE. Há uma “Super Liga” que poucos conhecem, que salvam mais vidas que os super heróis de quadrinhos!

A cada REAGENTE um pedido de socorro diferente! Sim, diferente porque somos seres que carregam em si diversas formas de compreender algo tão novo na vida, mas um tanto antigo (mais de 30 anos de epidemia). Ter HIV traz inúmeros medos, receios, fragilidades, né? Para alguns é preciso mostrar ser mais forte do que acreditou um dia ser!

São 365 dias ao ano encarando o HIV e a AIDS, mas hoje em especial essa luta ganha visibilidade,

que ainda tem muita invisibilidade diária, infelizmente! São milhões de pessoas que vivem com HIV no Brasil, e quantos você conhece? Você tem algum parente? Um familiar mais próximo? amigo/a? namorado/a? Peguete? Crush? Pode ser que você tenha e saiba! Pode ser que tenha e não saiba! A invisibilidade tem muitos motivos, já disse mais vou repetir alguns: medo, receio, pavor, vergonha, tristeza…

Sofrer discriminação por uma condição que será eterna é muita difícil, da um arrepio na espinha! Não é como gripe que até a auto medicação resolve (sou contra, mas resolve não é mesmo?).

Há anos pessoas acham que HIV/Aids passavam por beijo, abraço, toalha, talher, espiro...e ainda acham, parece loucura neh? Pois é, ainda acham! O achismos é algo tão entranhado que as pessoas fazem dele uma opinião a ser compartilhada sem o menor filtro de informação, esse que não tem no Instagram (risos)!

Hoje, mesmo sendo um dia de conscientização, alguém pode estar se infectando com HIV, não só por estar transando sem camisinha, mas por achar seguro que nunca pegará “isso” (tem pessoas que não falam nem o nome, igual “Voldmort” no filme Harry Potter!). O HIV não dá só em gays!, trans!, viado!, putas! como seu achismo ainda acredita, os homens Cis (ou trans), mulheres cis (ou trans), branco, indígena, albino, preto, criança, adolescente, jovem, adulto, idoso também podem e se infectam. HIV pode infectar qualquer um que transe sem qualquer barreira, afinal o vírus não é visível a olho nú! HIV não está na cara de ninguém!

Ah! e por favor não vem falar pra mim que “os jovens estão se infectando por acharem que HIV tem tratamento”!

Jovens têm seus exames REAGENTE e acham que vão morrer em dias, buscam na internet e veem Cazuza na capa da VEJA! No imaginário ainda acham que pessoas com HIV são super adoecidas, a beira da morte e acham que essa será sua história! Jovens se infectam por que não tem informação atualizada sobre Viver com HIV! Pode e tem jovens, adultos e idosos que têm HIV e nem sabem ainda, pois estão bem, mas aí surgem os primeiros sintomas ou uma IST e puff realizam pencas de exames e lá está reagente para HIV (fora que acaba sendo o último exame a ser feito ou pedido, né?). Enquanto não faz o teste transa sem Camisinha SIM, porque geral transa até vocês adultos (vamos parar de hipocrisia!!!).

Ao menos uma vez na vida alguém já transou sem camisinha... “mas caramba porque o jovem não se cuidam, vocês tem informação!?” Queria tá presente em toda fala como essa para dizer: Qual informação o jovem tem?

Na escola não pode falar de prevenção, dizem que estimula o sexo, mal sabem eles que a falta de TV tbm (risos), em casa os pais nem tocam no assunto, se puderem dizer que os filhos vieram da cegonha eles dizem até hoje! Aí, quando tem na escola o “sexo”, só em biologia e é o masculino e feminino. Já na roda de amigos: homens só se falam em quantas pegou! Mulheres que já perderam a virgindade com o boy mais lindo! Cadê a tal informação? Se não fala de prevenção, IST e CamisinhaS (faz favor de falar da feminina/Vaginal/interna também, ela existe!), por que raios cobrasse tanto da juventude, com a justificativa de que a “informação tá aí”.

Se eu fosse depender da informação para me prevenir eu estava infectada!

(Ops! Pera! pane no sistema! Passando antivírus...vírus indetectável.) [Indetectável = Intransmissível]

Atuei no SPE em 2011 à 2013 e no PSE de 2014 à 2016, mas não dentro das escolas (no PSE) porquê? Sei lá, entrar na escola não é tão fácil. Nessa época, os alunos participavam das oficinas e recebiam informação, tiravam dúvidas e aprendiam! Foi uma experiência maravilhosa, mas quem sou eu pra julgar se a informação foi suficiente para que na hora da transa o casal (ou mais de dois, pois não podemos limitar a quantidade de pessoas em uma transa não é mesmo produção!), decidissem sobre usar ou não o preservativo? Quem é você pra cobrar isso das pessoas? Ah não ser que você usa camisinha em TODAS, TODAS relações sexuais, talvez assim seria possível você cobrar sobre o uso.


“— Ahhhh sempre usei camisinha, como casei não uso mais”


Ueh, mas a informação não é use sempre camisinha sempre? confuso não? Mulheres casadas tem se infectado, a tal feminização do HIV tem aumentado. Aí ok, o casal pactuou que no casamento, tem confiança, tem fidelidade! Mas, vamos refletir que se transar sem camisinha é OK! Porém faça a testagem para HIV sempre que puderem, não custa nada pedir junto ao preventivo ou ao hemograma completo. O teste no SUS é free, grátis, 0800, não paga nada! (bom tá incluso no imposto, então tá pago!)

Hoje é apenas um dia do ano, já falei neh! Fui chamada pra umas cinco entrevistas só para ser postada hoje! (AFF) Beleza acho importante, mas precisamos falar mais que um dia sobre HIV/Aids, bem como HTLV (não conhece “miga/o sua/seu louka/o” vai ler sobre, dica: é outra IST)..

Eu não me infectei por via sexual (transmissão horizontal), mas eu nasci com HIV (transmissão vertical) encarei a Aids quando soube que ela levou meus pais sanguíneos, na época não existia remédios, eu tive sorte em 1996 os arv’s (antirretrovirais) chegarem ao Brasil (SUS). Os remédios salvaram parte da minha vida, a outra parte foi meus pais do coração (meus tios me adotaram!) que nunca me trataram com discriminação, me deram e dão muito amor e carinho, fazem vários dias da minha vida dias felizes (não é todos, doeria as bochechas) tive e tenho todo apoio! Quantas vezes só tomei remédio porque eles me deram nas mãos...eles salvam minha vida todo dia!

Hoje muitos de vocês acabam de saber que eu sou uma jovem que vive com HIV e não importa a forma de transmissão estou agora vulnerável a sofre discriminação pela falta de informação que existe e muitos de vocês ajudam nisso ao não falar sobre, ao não se informarem! A discriminação mata mais que o vírus!

Eu quero e desejo que se fale da importância da prevenção, da importância de saber da sua sorologia, da importância de saber que é possível viver com HIV, mas que não é sempre fácil! Eu não sou ativista só no dia primeiro de dezembro. Um grande amigo disse isso há umas semanas atrás:


“— Eu não luto contra a Aids só hoje, minha luta é diária!


Eu agradeço há muitos jovens que falaram da sua sorologia, me motivaram durante anos a me fortalecer e a buscar o dia que eu quisesse contar! (à Mica, Tom, Kleber, Andréia, Ozzy, João, Diego, Manu, VóBia, Heliana, Aline, Luana e Rugg que apesar de recente é incrível vê-lo falar abertamente,

pois acompanhei todo processo dele) [Desculpe se esqueci alguém]! Só gratidão!

Agradeço aos meus amigos e amigas que sabem da minha sorologia e nunca me discriminaram, me apoiaram muitas vezes.(quem é sabe, sabe a diferença em cada abraço em cada palavra de conforto!) [Aos amigos que nunca contei, desculpe pois não é algo fácil de contar]. Agradeço aos meus pais de sangue, muito mais aos meus pais de coração e alma, às minhas irmãs, aos meus familiares! Agradeço às minhas duas psicólogas que me ajudaram muito na minha infância e parte da adolescência (Olha só agora eu sou uma psicóloga, quase falta apresentar TCC dia 15 #AprovaEuBanca), não por eu ter HIV, mas por entender que uma boa escuta e intervenções ajuda o ser humano em sua subjetividade de vida! Agradeço a Regina, Andrea e Jeane. Agradeço uma pessoa que amo e tem feito meus dias de calor no coração! Se sentir incrível e super amada é inexplicável.

Apesar de ter dado algumas entrevistas hoje publicamente no meu Facebook abertamente sobre este grande segredo, cansei de viver, eu quero VHIVER SEM MEDO! Eu tenho cara, tenho nome, tenho planos, lutas e sonhos. Não sou um perigo, não sou uma bomba atômica que precisa ser isolada. Meu tratamento não requer só remédios, mas também respeito, carinho, amizade e amor.

Eu encarei a Aids cedo, mas hoje eu vivo com HIV, não quero sua aceitação, te desejo e peço apenas que se informe! (ahh pode tirar dúvidas e me fazer perguntas também!). Ahhh antivírus passou né? deu indetectável, isso quer dizer que minha carga viral

(quantidade de vírus) é menor que 40 copias/ml cúbico! ISSO QUER DIZER QUERIDIZ, QUE O HIV É INTRANSMISSÍVEL PRA ALGUÉM! IHUWLLL SEGURA ESSA SOCIEDADE (poderia ser alternativa, mas é ainda muito preconceituosa).

É isso, eu vivo com HIV há 25 anos! E eu acredito que o mundo ainda será um imenso Jardim, eu sigo sendo semente!

— sentindo-se em paz.

Tecida


Laura Daviña



Confio minha escuta ao cultivar as vozes

Ao ressoar poesia

abrem-se sulcos geológicos


De poder ser sangue

de correr arterial

bate duas vezes a seco até vulcão sarar


De chorar sentido

de ter sido tecida

de querer terremoto até tiqqun olam


Gratidão não cabe dentro da palavra

que minha língua esponja e coagula em gestos

de mudança

de luta

pra essas vidas plenas, em integridade

pra dignidade, acesso e qualidade

pra seguir sentindo pensando pulsando

em nós

Efavirenz


Alan



Sob meus pés o chão se desfez

O equilíbrio era dificultado

A sensação era que sobre nuvens eu caminhava

Com mais nitidez eu sonhei

Meu rosto ruborizava

Efeito colateral que assolava

Um vírus em nós


Leandro Noronha da Fonseca



um vírus existe dentro de nós

latente nas ruas lotadas

no ventre das coisas cortadas

quando estamos juntos ou a sós


no silêncio dos livros da história

um grito é vírus feito de escombros

atrito do cansaço nos ombros

pedra e poeira cheios de memória


no aperto de mãos ao beijo na boca

no acerto de contas ao cheiro da flor

no mais cheio ou mais oco espaço

o abraço do vírus tem frio e calor


do som do peito ao disco riscado

todos os vírus cantam delicado

mandam recado a quem entende

que é urgente se fazer escutado


quando o ponto dos dias é encontro

todo estrondo é estranho vento

a agulha das horas não dói no pano

um vírus costura redes e tempo


cor palavra terra planta viva

cor profana água santa língua

cor presente fogo manso míngua

todo vírus uma vida pinta






dança em toda palavra um vírus

em toda estrada, construção e rito

em todo mito, coração e espada

em toda escada, ponte e infinito


histórias são feitas de vírus

respiros, presente e destino

de vírus são feitos os futuros

prenúncio, alvorada e sussurro


dentro das folhas em branco

dentro do silêncio e da voz

dentro das nossas palavras

um vírus habita em nós.

Composição


Leandro Noronha da Fonseca



quando fiquei sabendo

não imaginei o peso

dolutegravir sódico 50mg

do silêncio


quando contei o segredo

os lençóis úmidos de suor

fumarato de tenofovir desoproxila 300mg

ao relento


quando desejei o homem

minha carne, minha cama, minha vida

lamivudina 300mg

ele nunca mais me respondeu

Mudança


Tiago Sales



Estava lá ele numa boa. Todo quentinho, confortável, imerso em um ambiente gostoso, cheio de tudo que ele precisava. Poderia viver lá para sempre? Para sempre eu não sei, por mais um tempo até que sim, mas fora ensinado a seguir caminhos que fossem possíveis, migrando e proliferando sempre que desse – isso os seus antepassados fizeram para sobreviver. Certo dia o espaço em que nascera foi tomado por um intenso tremor, feito terremoto que destrói uma cidade inteira, mas nada aparentemente por lá foi destruído, apenas atritado e deslocado. O seu mundo balançou e parte daquele lugar no qual estava imerso foi jogado para fora numa velocidade nunca vista antes. No seu tempo de vida, estivera em calma. Para ele, era uma vida toda, mas, no tempo nosso, eram apenas 13 horas desde o momento em que saíra do compartimento em que foi gerado junto de milhares de irmãos idênticos. Ao ser jogado para fora junto do líquido viscoso no qual ele fazia morada, chegou em um lugar diferente. Talvez pelo terremoto que lhe afetou aquele espaço estivesse todo rachado. Cada buraquinho era uma porta para uma nova morada. Ou será que todas as portas o levariam para o mesmo lugar? Ele não sabia. Só sabia que, caso não encontrasse um outro ambiente em que fosse possível perseverar, morreria. Teve que nadar velozmente e, felizmente – para ele -, conseguiu entrar em uma daquelas portas. Ao adentrá-la, percebeu outras camadas que precisaria de cruzar para chegar ao interior daquele novo espaço. Não sabia o que lhe

aguardava mas até que não era tão diferente do outro lugar em que habitara. Uma certa atração físico-química entre o seu corpo e as paredes daquele espaço o guiaram. Era uma atração forte, desejosa, quase erótica: queria misturar-se. Conseguiu fundir-se com uma das paredes e, lá dentro, encontrou um habitat lindíssimo onde poderia viver e proliferar com uma força tamanha que jamais pensara viver. Era o lugar mais bonito que já vira. Lá encontrou espaço e condições para ser outros, e outros, e outros. E foi. Rapidamente, foi. Foi muitos. O tempo se embaralhava e ele ia se multiplicando sem parar. Só foi. Era bom demais para ser verdade. E foi.

Contágio


Tiago Sales



Contato

Atração

Atravessa

Fura

Conecta

Tensão


Camadas

Perfuradas

Capas

Rasgadas


Avesso

Entranha

Gozo

Estranha


Vírus

Penetração

Morada

Habitação


Morte

Tesão

Vida

Coabitação


Cura

Saída

Desejo

Partículas

Fuga

Vazão

Espera


Tiago Sales



Tivi cayr

Segurei,

Faltou mão

Sobrou braço

Ainda há braços?


Sangue? Fome? Desejo?

Tempo.

A carga é pesada

Mas pode ser zerada


Bula

Burlar a medicina

Forjar uma saída

Poética ou asséptica?


Infectado

Conta as horas


Resultado

Território minado

Indeterminado?

Indetectável?


O que os olhos não veem

Será que o corpo sente?


Espera.






Em furos, vazão

Na boca, comprimidos

No corpo, segredos


Dolu uma, lami duas, teno três

Outra saída

Tripla terapia

— quem dá mais?

PrEP


Tiago Sales



Azul truvada

Entricitabina, tenofovir

Aproxima ou afasta?

Previne, cura ou trata?


Chega onde?

Como chega?

Chega quando?


Medicalização

Controle, segurança

Reforça o estigma?

Abre portas, move barreiras, muda alavancas


Direito universal

Privilégio da capital

Chega pros B

Sobra no GGG

Atrasa pras T

E pros outres,

Dá tempo?

Cotidiano insólito


Tiago Sales



Cristiano, pouco antes de dormir, foi tomar os seus remédios e percebeu que faltavam apenas 4 comprimidos para que acabassem. Dariam para mais dois dias apenas, visto que tomava duas pílulas diárias. Era quinta-feira e sabia que a farmácia na qual poderia buscá-los não abriria no final de semana. Ou iria no dia seguinte, sexta-feira, ou ficaria sem as suas sagradas pílulas no final de semana. O jeito era ir, pois necessitava destes comprimidos para permanecer saudável e vivo – pelo menos foi o que os seu médico lhe dissera. “Tome-os todos os dias no mesmo horário. Não pode atrasar e nem esquecer nenhum dia. Tome sempre e terá uma vida normal. E fique tranquilo, não tem efeito colateral”. Como é fácil alguém falar sobre o que não vive…

Cristiano tomava sempre as pílulas disciplinadamente e, geralmente, as buscava com pelo menos uma semana de antecedência mas, dessa vez, se distraiu e quase deixou que elas acabassem. O jeito era ir no dia seguinte mesmo, não tinha outra saída. Já se deixou angustiado pois na sexta-feira tinha muito trabalho e seria difícil conciliar a ida até a dita farmácia, fora a certa estranheza que o momento de retirada das pílulas lhe causava. Tentou se organizar para ir logo pela manhã, antes do trabalho. A farmácia abria às 7:30 da manhã, às vezes com alguns minutos de atraso. Ele começava a trabalhar às 7. Como faria para chegar atrasado? O que os seus colegas pensariam?

Cristiano detestava atrasar ou faltar ao trabalho, e usar desculpas ligadas a questões de saúde eram para ele um risco. Será que descobririam o seu segredo? O que poderia justificar um atraso de, pelo menos, uma hora para chegar na empresa na qual ele era gerente? A angústia lhe consumira e custou a dormir. Pensou em alguma desculpa para usar no dia seguinte. Poderia dizer que o seu gato estava passando mal ou que o cano de sua casa havia estragado. Muitas questões. Ainda naquela noite decidiu falar no grupo de WhatsApp da empresa que no dia seguinte acompanharia uma tia idosa e que não tinha outra companhia para ir em uma consulta logo pela manhã. Sabia que aquela desculpa abriria brechas para questionamentos mas, na posição que ocupava e no mundo de tanta gente curiosa, qualquer uma poderia ser estopim para a vontade de saber dos outros. Mensagem enviada, cabeça no travesseiro, uma noite de sono um pouco inquieta.

Às 6 da manhã do dia seguinte acordou, ficou na cama alguns minutos, se levantou preguiçosamente, fez um café e tomou rapidamente. Tomou um banho e vestiu-se. Estava pronto para sair em direção a um grande dia – não grande de grandioso e cheio de coisas importantes, mas sim repleto de muitos afazeres que consumiriam as últimas energias que restaram até a sexta-feira. Às 7 em ponto chamou o Uber com direção à farmácia. Não poderia ser qualquer farmácia da cidade. Tinha que ser A Farmácia.

Na primeira tentativa de conseguir um motorista que lhe levasse, a viagem foi cancelada; na segunda, também; somente na terceira o motorista aceitou, mas demorou um pouco. Em decorrência dos altos preços da gasolina estava cada dia mais difícil e caro conseguir uma viagem nos aplicativos de transporte urbano. Por

volta das 7:15 o carro chegou e ele abriu a porta, mas, antes de entrar, percebeu que o motorista estava sem máscara, e pediu para que o mesmo a coloca-se. Mesmo vivendo com uma configuração de saúde rotulada de comorbidade, ainda não havia tomado a segunda dose da vacina contra a covid-19, e ele sabia bem o impacto que um retrovírus pode ter em uma vida. O motorista, meio descontente, colocou a máscara e seguiu em silêncio. Ele de fones de ouvido escutando um podcast sobre ficção científica e o motorista ouvindo sertanejo universitário em uma das tantas rádios que tocavam esse estilo musical em sua cidade média e interiorana.

Alguns minutos depois, o motorista o pergunta se ele trabalhava naquele lugar que era o destino da viagem. Ele responde somente que não. Paira um silêncio entre as músicas e propagandas da rádio e as vozes pausadas do programa que escutara. Não era incomum que os motoristas perguntassem sobre o lugar que ia. Ou não sabiam o que era, se era um posto de saúde comum, ou desde o começo sabiam o que que tal lugar fazia e a quem atendia. Um certo constrangimento em outras viagens levara ele a pedir para que uma amiga o acompanhasse e dirigisse com ele até o local da farmácia, que era também o mesmo de suas consultas e exames. Mas, como percebera de última hora, não pode pedir que ela o fizesse companhia dessa vez.

A solidão da viagem o deixava, de alguma forma, exposto. Faz parte, não tinha como também viver uma vida totalmente no sigilo. Um pouco sempre vaza. De tudo. Algo sempre sai. E ele saiu do carro após os 15 minutos de viagem. Entrou pela porta branca – meio suja pelo tempo – do espaço, caminhou até a farmácia e, chegando nela, uma fila o

aguardava com quatro pessoas na sua frente. Elas olhavam para baixo ou mexiam no celular. Uma delas estava com óculos escuros logo cedo. Quando chegou a sua vez, entregou o seu cartão do prontuário, mostrou a receita de seus medicamentos e recebeu o retorno de que precisaria renovar aquela receita para a próxima busca de remédios mas que, por sorte, ainda poderia pegar mais dois meses de medicação.

Cristiano pegou as quatro caixas de seus medicamentos, retirou os potes de dentro das caixas de papel e lá mesmo descartou-as. Guardou os potes na mochila e foi-se embora. Um barulho de alguns comprimidos se mexendo o acompanhava. Por sorte uma blusa de frio dentro da mochila abafava o barulho. O jeito era chegar no trabalho e deixar tudo guardado no armário trancado e com cadeado. Não que alguém mexeria em suas coisas, mas… vai que, né? Poderiam até descobrir o seu segredo. Rapidamente saiu, chamou outro Uber, deu sorte de que aceitasse a viagem de primeira e seguiu. Em uma manhã de sol no fim do inverno de 2021, ele seguiu.

Cura


Tiago Sales



Pílulas diárias

Escritas, palavras

Derivas em letras

Meias verdades

Vazões, ficções

Negar a morte anunciada


Escrever

Não se perder

Falar

Para se encontrar

Clichê?


Fazer clínica com as palavras

Botar para fora

Digerir

Fazer agora

Escrever com vontade


Sem saída

Só resta o agora

Resta a escrita

Resta a palavra


Restos…

De uma vida inteira

Muitas palavras

Múltiplas palavras

Palavras cortantes

Palavras falantes

Palavras caladas

Palavras infectadas


Poéticas diárias

Criações, experimentações

Resta uma vida toda

Pela frente

OLHE PRA MIM


Victor Bebiano ( VIBE )



Quem foi que disse que eu não cantaria ?

Quem foi que disse que eu não dançaria ?

Quem foi que disse que eu não amaria ?

Quem foi que disse que eu não..?


Quem foi que disse que eu não seria ?

Quem foi que disse que eu não poderia ?

Quem foi que disse que eu não viveria ?

Quem foi que disse que eu não…?


O meu conforto é o que te desconforta

Meu corpo que grita e pulsa a toda hora

Exótica é tua opinião

Nesse sistema sou intervenção


Minha condição hoje não me limita

O jogo virou, eu só exalo vida

Sigo meu propósito dia após dia

Mais forte e mais bela, olha só quem diria ?


Olhe pra mim

Olhe de novo

Olhe direito

Não me olhe torto


Olhe pra mim

Olhe pro outro

Olhe pra si

Faça um esforço


As definições do vírus foram atualizadas.


ViBe - OLHE PRA MIM


trilha sonora do quadrinho a seguir
"Último encontro", de Rafa Roller.

TRÊS PARES DE OLHOS


Rafa Roller



Era um sábado quente como qualquer outro dia de dezembro em São Paulo, Nelma estava atrasada para chegar na peça do Davi, mas observava a cidade pela janela do táxi enquanto ouvia “Bem que se quis” da Marisa Monte na rádio. O ano era 1989 e só se ouvia essa música, a mulher é um sucesso! Mas a preocupação de Nelma era com Davi, que estava doente e talvez tivesse que dar um tempo do teatro.

“Bem que se quis, depois de tudo, ainda ser feliz. Mas já não há caminhos pra voltar”, dizia Marisa Monte na música enquanto Nelma descia do táxi. Foi a primeira vez que entrou no Theatro Municipal depois da reforma, estava tudo tão verde. Chegou aflita, com os olhos passeando por toda a plateia tentando avistar Vicente, mas como a peça já havia começado ela logo sentou sozinha, em um lugar no meio.

Nelma, Davi e Vicente são um trisal, mas desde que Vicente foi estudar violino no Rio de Janeiro eles têm se visto muito pouco. Ele disse que tentaria vir para a peça de Davi mas não escreveu mais. Davi pensou que talvez ele quisesse aparecer de surpresa.

— Cansado de tanto tropeçar, sem saber se ia chegar, escrevi um bilhete dizendo que ia voar… — dizia Davi para uma plateia silenciosa enquanto Nelma era transportada para outra realidade.

Nelma gostaria de prestar mais atenção, mas aquele clima de fim de ano a deixava reflexiva demais. Estava sendo um ano difícil, sabe? Dava uma saudade de 1987. Em 87, tudo estava em ordem. Ela e Davi,

que na época eram apenas melhores amigos, decidiram dividir um aluguel. Foi o início de um novo ciclo cheio de surpresas boas, mudanças e a chegada de uma nova pessoa que mudaria as vidas deles.

Foi numa segunda-feira à noite de 87 que faltou luz na Santa Cecília, o bairro onde foram morar. Depois de alguns minutos de escuro, regados a vinho e luz de velas, Nelma e Davi ouviram o som de um violino muito profundo vindo da sacada. Entediados e curiosos, se aproximaram para ver de onde vinha o som. Vinha de um moço no prédio da frente, com uma taça de vinho ao lado, sorridente, cabelo enrolado e pose de independente.

A essa altura Davi e Nelma já estavam um pouco embriagados de vinho e começaram a dançar na sacada. A química sempre existiu entre os dois, não era à toa que eles sempre trocavam uns beijos em festas desde que se conheceram. Do outro lado Vicente ouvia risadas e avistava as mãos de Davi na cintura de Nelma, dois pra cá, dois pra lá, um cabelo rosa a flutuar, dois narigões a se encontrar, uma pisada no pé aqui, outra ali, mais risos e, então, silêncio.

— Ei, moço. Não pare de tocar não! — gritou Davi, que nunca foi tímido.

— É Vicente!

— O que?

— Meu nome! É Vicente!

— Toca pra gente, Vicente! — gritou Nelma.

— Vem aqui em casa que eu toco.

Davi e Nelma se olharam confusos, será que tinham entendido errado? Nos olhos de Nelma havia vontade de ir, mas ela era desconfiada demais para ir na casa de um estranho assim. Mas antes que ela

pudesse falar qualquer coisa Davi gritou de volta:

— Não precisa convidar duas vezes!

Com três garrafas de vinho branco na mão, Davi tocou a campainha e Nelma se questionou se eles não estavam sendo irresponsáveis, mas quando a porta se abriu Nelma só conseguia pensar que não imaginaria que Vicente era tão alto quando o viu pela sacada. Davi gostou do cheiro de roupa limpa que saía do apartamento, apesar de estar tudo bem bagunçado. Vicente os chamou para dentro e foi logo abrindo os vinhos, pois estava morrendo de vergonha. Dali em diante, a conversa fluiu tão bem que parecia que eles três se conheciam há anos.

A noite foi longa, Vicente não tocou mais violino e ninguém sentiu falta, eles estavam mais interessados em se tocar entre si. Não se sabe ao certo como tudo aconteceu, pois estava escuro demais e com vinho demais, mas sabe-se que na terça-feira de manhã eles acordaram os três abraçados na cama de Vicente.

Nelma e Davi foram embora com a certeza de que voltariam ali mais vezes, mesmo que a luz não acabasse mais. E eles tinham razão, os três começaram a se encontrar sempre que podiam, sem se importar com o que o mundo iria pensar. O amor que estava surgindo entre os três era lindo demais para não ser vivido.

Mas agora é tão estranho para Nelma estar sozinha na plateia, assistindo a um Davi doente e pensando em um Vicente distante.

— Girassol, olha pra mim. Se a luz do sol não encontrar, se junte aqui, vamos somar. — gritou Davi no palco.

Nelma sentiu um braço quente e peludo esbarrar no seu e era o de Vicente, que tinha acabado de se sentar na cadeira ao lado.

— Pensei que você não vinha mais... — cochichou Nelma surpresa para Vicente, que apontou para o palco como quem queria prestar atenção na peça.

Agora parecia um sábado mais normal, Nelma pensou. Mas o fim da peça foi chegando e Davi não entrou para a cena final. Improvisaram um final sem ele e, ao som de aplausos, o coração de Nelma foi ficando apertado. Pegou Vicente pelo braço e foi às pressas para a coxia, lá encontrou Davi pálido, suando frio e com falta de ar. O bar que eles iriam depois da peça teria que ficar para outro dia, o date do trisal estava marcado no hospital.

Davi pegou uma infecção e, como seu corpo estava enfraquecido, teria que ficar em observação. No dia seguinte, foi transferido para um quarto sem previsão para ter alta.

Nelma e Vicente sabiam que Davi tinha recebido um diagnóstico de HIV recentemente e, diante de um cenário tão trágico de tantas mortes por AIDS, por um momento pareceu que Davi não sairia mais daquele hospital.

Três dias se passaram, era terça-feira, Nelma levou alguns livros para o hospital e Vicente levou uma máquina fotográfica que ele havia comprado recentemente. Foi como se o mundo tivesse parado, fizeram fotos de todos os jeitos, poses, beijos, em duplas e trio. Fofocaram, falaram mal das pessoas, conversaram sobre a vida, sobre bissexualidade e sobre tudo. Terminaram a tarde lendo histórias, cada um lia uma página, e conforme o sol ia se pondo, Davi, que andava cansado demais, foi pegando no sono. Nelma e Vicente assistiram ele dormir com um semblante feliz e sereno no rosto, deram um beijo em sua testa e foram embora.

Parecia uma despedida, foi muito estranho, mas um novo sábado chegou e Davi recebeu alta. Ufa, foi só um susto! Vicente e Nelma foram buscar Davi no hospital com o sorriso de orelha a orelha. Davi surgiu pela porta, correndo para abraçá-los, seu cabelo estava mais castanho do que nunca e ele escolheu sua melhor roupa para sair do hospital e aparecer bonito para seus namorados. O abraço foi apertado, mas logo encerrado por um Davi com olhos marejados. O resultado dos últimos exames tinha saído e os remédios que Davi vinha tomando não estavam ajudando, sua infecção por HIV havia evoluído para AIDS.

Os olhos de Nelma e Vicente se encheram de medo. Muitas pessoas estavam morrendo por decorrência da AIDS. Como saber o que poderia acontecer agora? Só restava voltar para o abraço e desejar com todas as forças que o amor que existia ali entre os três resolvesse tudo e não fosse mais uma história interrompida pela epidemia de AIDS.

— Mas hoje é sábado, meus amores. — disse Davi limpando os olhos — Eu quero explodir, sair sem rumo, inventar paixão e celebrar a vida!

Naquela noite eles decidiram fazer algo especial como não faziam há muito tempo. Andaram por toda a cidade, com algumas pausas, porque Davi ainda estava com pouco fôlego, mas a cada pausa aproveitavam para fazer charminho pelo cenário paulistano.

No Viaduto do Chá, sentiram em seus corpos um encaixar, deram gostosas risadas a debochar de um olhar estranho que estava a passar. Na Praça Ramos de Azevedo, a sede de mudar o enredo, com a confiança de um entrelaçar de dedos. As dúvidas até virão na Avenida São João, mas os três as queimarão... como o acender de uma paranga na Avenida Ipiranga.

Antes de chegar na Praça Roosevelt, três pares de olhos brilhantes iluminavam a Consolação, seus corpos entrelaçados enquanto suas almas dançavam pela cidade, celebrando a vida. Chegando na Praça, deram o ar da graça, compraram uma cachaça e se abraçaram entre a fumaça de um cigarro ou outro, sem pensar em desgraça ou ameaça.

Davi só não havia contado para eles que o médico lhe deu no máximo 6 meses de vida, mas quem sabe da vida, não é? Quem sabe os dias não passem e se tornem semanas que se tornam meses, e os meses se tornem novas pílulas. Quem sabe a ciência não ajude as noites paulistanas a permanecerem iluminadas, trazendo um novo suspiro de esperança e transformando o luto em luta por dias promissores.

Abraço


Tiago Cesar



Resultado reagente.

Mais um teste para seguir o protocolo,

Eu segurando a esperança como se fosse um neném no colo,

Não teve jeito, o resultado não me animaria.


O mundo desabando por dentro,

E ninguém percebia,

Eu sempre atento,

Escondendo tudo que sentia.


O abraço veio na terapia,

Afinal, que sentido isso tudo tinha?

Entre soluços do choro, a conversa acontecia,

CD4, pouco tinha.


Descer intensamente num poço frio e escuro,

Esperando ser recebido com murros.

Cheguei? Estou no fundo?

Que braços são esses que me seguram?


— Prazer, meu nome é Andrea.

Aos trinta


Tiago Cesar



Desde novo reprimido,

A viver um padrão constituído,

Numa família muito religiosa,

Onde mais valia rezar um terço, do que uma boa prosa.


A liberdade veio aos dezoito,

Descobrindo o verdadeiro prazer no coito,

Antigas inseguranças, já não mais o tinha.

Aquela sede de viver, nada me detinha.


O segundo grande amor veio aos vinte,

Paixão conturbada, livre e liberta,

Tão intenso que eu mal sabia,

O que ainda me aconteceria.


Aos vinte e quatro um diagnóstico positivo,

Queria dizer que levei numa boa,

Mas as lágrimas não foram a toa,

Deslizaram no meu corpo e desenharam um novo eu, que levo até hoje comigo.


Aos 30 cheguei.

Com mais consciência de que o tempo é rei,

Orgulhoso do ser humano que me tornei,

E desfilando com as lindas cicatrizes que ganhei.

Alguma coisa
aconteceu com você


Marcos Tolentino



Alguma coisa aconteceu com você ao nascer bicha e ninguém te deixar viver isso apenas na segurança da porta trancada do seu quarto.

Alguma coisa aconteceu com você que sempre viveu as coisas antes do seu tempo. Enquanto deveria estar nas redes sociais reclamando do retorno de saturno, você recebeu a notícia de um médico. Era seu quarto dia de internação, 25 de março, feriadão de Páscoa. Nada de chocolate esse ano.

Alguma coisa aconteceu com você que saiu confuso da primeira consulta. Você é de humanas, nunca foi bom com números, nem siglas. Mas não tinha problema: era só tomar o remédio todo dia no mesmo horário. Até quando?

Alguma coisa aconteceu com você quando contou para ele porque tinha ficado tão doente. Ele te abraçou, e te acalmou como só ele sabia fazer.

Alguma coisa aconteceu com você quando se mudou novamente. É minha quarta cidade e aqui eu posso ser quem eu quiser, você pensava. Você ainda é uma bicha, eles deixaram claro, entre uma porrada e outra, em uma madrugada fria na República.

Alguma coisa aconteceu com você quando entrou na casinha verde na Vila Mariana. Como era a frase que estava escrita na parede? Ninguém é tão alguém que não precise de ninguém. E você nunca se sentiu tão sozinho.

Alguma coisa mudou em você que começou a entender que onde antes havia medo da morte, dos remédios darem errado, de uma surpresa em algum exame, também havia vida. Vida. Lembra quando na faculdade você brincava com seus colegas que entre a História e a vida vocês ficariam com a vida? Pois, então, voltou a lembrar dela.

Alguma coisa mudou em você quando encontrou a sua maneira de falar claramente sobre a sua experiência. Era uma pandemia, você lembra? Uma doença nova. Todo dia era dia de chocolate. E pela primeira vez, depois de muito tempo, você não se sentiu sozinho.

Alguma coisa mudou em você que entendeu que não bastava tomar o remédio todo dia no mesmo horário. Nem aprender as siglas e os números. Tudo isso ajudava. Mas era preciso encontrar o seu sentido para tudo isso. Sem que você parecesse com um caso de superação de um artigo da seção de Bem-Estar de um portal de notícias, daqueles que tentam desmistificar a vida de quem vive com hiv. Ou de um vídeo do Youtube: viver com hiv é simples, aprenda como.

Alguma coisa mudou em você quando você começou a falar: eu vivo com hiv. Porque ali você passou a contar uma história de vida. Da sua vida. E que faz referência a outras vidas que vieram antes da sua. Histórias cheia de reviravoltas, daquelas que fazem render a narrativa de uma série, como as que você assistia antes de dormir e se perdia madrugada adentro.

Muita coisa mudou em você desde que você escreveu essa carta. Não vou te dar spoiler sobre a sua vida. Viver com spoilers não tem graça. E você é

libriano: sempre odiou corresponder às expectativas das pessoas.

Muita coisa mudou em você enquanto terminava essa carta. As cicatrizes e alguns medos ainda existem. Assim como a confusão com as siglas e com o nome dos remédios que você nunca aprendeu.

Mas tanta coisa aconteceu com você...

COMPOSIÇÃO


Marcos Tolentino



Cada comprimido revestido de 30 mg contém:

Dúvida

Ansiedade

Efeitos colaterais

Normalidade? .............................................................. 10 mg

Silêncio

Vontade de falar

Sobre o quê?

Para quem?

Por quê?

Ou seria melhor calar? ............................................. 10 mg

Dúvida

Ansiedade

Solidão

Outra possibilidade

Reinvenção .................................................................... 10 mg

NINGUÉM
É TÃO ALGUÉM
QUE NÃO PRECISE
DE NINGUÉM



Andrea P. Ferrara,
Bruno O., Jjoão Paes
e Marcos Tolentino

O GIV – Grupo de Incentivo à Vida foi fundado em São Paulo em 1990. A proposta inicial era formar um grupo de solidariedade e de convivência para pessoas que viviam com HIV/Aids, no qual elas encontrassem um espaço seguro para compartilhar suas vivências e experiências, tornando-o o primeiro grupo de ajuda mútua do Brasil formado e dirigido por pessoas com HIV/Aids. O GIV passou então a promover encontros e reuniões dos quais participavam profissionais de saúde e de serviço social que levavam informações sobre a saúde e os direitos das pessoas que viviam com HIV/Aids. Os espaços promovidos pelo GIV se tornaram também espaços de acolhimento, sociabilidade e de diversão, importantes para combater o isolamento social resultante dos estigmas e preconceitos que para muitas pessoas se seguia ao diagnóstico positivo para o HIV. Além dessa dimensão de um trabalho mais cotidiano, de apoio e acolhimento, o GIV se afirmou como um importante espaço de ativismo político no movimento social de HIV/Aids. Com o passar dos anos, o GIV se tornou ainda um espaço aberto tanto para quem vive ou convive com HIV/Aids, fortalecendo uma rede de apoio e ativismo mais ampla. Atualmente, as atividades do GIV continuam na sede da organização, no bairro da Vila Mariana, em São Paulo.

O Acervo Bajubá se iniciou em 2010, por iniciativa de um grupo de ativistas, artistas, colecionadores e pesquisadores LGBT+. O seu objetivo é constituir um acervo voltado para a preservação, salvaguarda e investigação historiográfica da arte, memória e cultura LGBT+. Para tanto, voltou-se para a aquisição de documentação em diversos suportes que tematizem a diversidade sexual e a pluralidade de expressões de gênero no Brasil. Sua coleção contabiliza cerca de 4.000 itens como obras de arte,

periódicos, fotografias, audiovisuais, LPs, CDs, cartazes e camisetas de ativismo produzidos por pessoas LGBT+ brasileiras, além de produções LGBT+ estrangeiras traduzidas e que circularam no país. Desde 2019, o Acervo Bajubá ocupa uma das salas do Centro Cultural da Casa 1 em São Paulo.

Em 2021, o Acervo Bajubá e o Núcleo de Pesquisa e Criação da Casa 1 iniciaram um trabalho de recuperação e registro da memória institucional do GIV. Este trabalho é também resultado do envolvimento do Bajubá em outros projetos relacionados à história da epidemia de hiv/aids no Brasil, como por exemplo a exposição virtual Memórias de uma epidemia, realizada em parceria com o Museu da Diversidade Sexual e a Associação da Parada do Orgulho LGBT de São Paulo; mas também de uma percepção de que a temática do hiv e os seus efeitos nas comunidades LBGT+ brasileiras atravessava um importante conjunto de documentos que compõem a própria coleção do Bajubá. O trabalho iniciado com estes documentos apontou para outras narrativas possíveis sobre a história da epidemia de hiv/aids no Brasil e que ainda precisavam ser registradas e contadas, principalmente sobre as respostas sociais produzidas a partir da notificação dos primeiros casos no país.

Quando falamos de memória, nos referimos à produção ativa de sentidos sobre o passado no presente. No caso de uma organização como o GIV, essa produção pode ocorrer por meio da organização e preservação dos documentos históricos em distintos formatos guardados em sua sede e que foram produzidos a partir da sua mobilização em torno do tema da epidemia de aids e dos direitos das pessoas vivendo com hiv/aids e das tarefas cotidianas que ao longo dos últimos trinta anos deram à organização

uma identidade própria. Mas essa história também pode ser contada a partir dos relatos das pessoas que militaram, participaram ou frequentaram o GIV, cujas lembranças estão marcadas por sensações, descobertas, questionamentos e aprendizados, e por suas vivências e experiências pessoais com o hiv/aids.

O trabalho desenvolvido pelo Acervo Bajubá, pela Casa 1 e pelo GIV parte, então, do reconhecimento de que tanto os documentos históricos que compõem o acervo institucional da organização como as recordações pessoais são importantes para recontar uma história que se iniciou em 1990 a partir do encontro de um grupo de pessoas que viviam com hiv e que se encontraram e se reconheceram nas atividades oferecidas pelo CRT-Aids da Secretaria de Saúde de São Paulo e que ainda não terminou, pois a epidemia de aids ainda é um problema social e político no Brasil.

Poéticas de vida: escritas de si(da) é um dos primeiros desdobramentos deste trabalho. Entre as iniciativas desenvolvidas pelo Núcleo de Pesquisa e Criação da Casa 1 está a Editora Monstra: uma iniciativa editorial que tem como propósito documentar e fazer circular o pensamento produzido por pessoas LGBT+. Por meio da Editora Monstra e do seu projeto CADERNOS, buscamos assim resgatar uma história de solidariedade e de luta que poderia acabar se perdendo, principalmente devido à resistência que encontramos no Brasil para falarmos abertamente sobre o tema do hiv/aids. Ao produzir este livro, a Casa 1, o Acervo Bajubá e o GIV buscam resgatar memórias que estavam guardadas nas lembranças pessoais e nos registros produzidos e guardados na sede do GIV, tornando-a, assim, pública e acessível.

HISTÓRIAS ESCRITAS
PELOS MAIS JOVENS


A oficina Escritas de si(da)



Na década de 1990, o GIV iniciou um projeto, o Viver Criança Adolescente, que atendia crianças, adolescentes e familiares que viviam ou conviviam com HIV/Aids, em sua maioria infectados ou afetados pela transmissão vertical. Segundo o Guia de Terminologia do UNAIDS, a transmissão vertical ocorre com a passagem do vírus da pessoa gestante para o bebê durante a gestação, o trabalho de parto, o parto propriamente dito ou a amamentação. O projeto buscava contribuir para uma formação de crianças e adolescentes baseada na solidariedade, no respeito à diversidade humana e à vida, de modo a desenvolver ferramentas e condições de enfrentamento à epidemia de aids.

Com os avanços no desenvolvimento e no acesso a formas de prevenção e aos medicamentos, a demanda dos participantes do projeto acompanhou a mudança de perfil da epidemia no Brasil, com a diminuição da procura por jovens infectados por transmissão vertical e o aumento da procura por jovens recém-infectados por via sexual, em sua maioria gays. O projeto passou então a se chamar Viver Jovem, tornando-se um espaço voltado para jovens que vivem com HIV/Aids entre 15 e 29 anos.

Historicamente, a criatividade sempre marcou as práticas do GIV na criação de espaços seguros de sociabilidade e de compartilhamento de vivências pessoais. Logo, a proposta desta publicação partiu de

um entendimento de que o desenvolvimento de uma oficina de escrita literária e artística poderia proporcionar a um grupo de jovens que participam hoje das atividades do GIV ferramentas criativas para o enfrentamento de questões relacionadas com o HIV/Aids, como, por exemplo, viver com HIV, adesão ao tratamento, revelação do diagnóstico, sexualidade, afetividade, entre outros. O exercício de escrever e desenhar histórias pelos mais jovens permite também que, por meio da escrita, surjam outros temas, elaborações, imagens e representações, relacionados a suas diferentes vivências pessoais com o HIV/Aids.

Pensamos, também, que essa oficina e publicação, foi um meio de envolver os jovens nesse projeto de recuperação e registro da memória institucional do GIV, pois apesar de eles estarem há pouco tempo na instituição, eles a representam no seu presente e futuro.

Além disso, acreditamos que a oficina seria uma forma de dar continuidade às estratégias criativas que marcaram as iniciativas do GIV desde os seus começos, sobretudo como forma de enfrentar o preconceito, os estigmas e o isolamento social que podem acompanhar a descoberta de um diagnóstico positivo para o HIV, tanto para a pessoa infectada como para aqueles que estão ao seu redor.

Nesse processo, uma das bandeiras alcunhadas pelo GIV na sua atuação no movimento social de hiv/aids é “ninguém é tão alguém que não precise de ninguém”. Poéticas de vida: escritas de si(da) busca retomar essa bandeira: a importância do encontro entre muitos alguéns para criar, resistir, elaborar, compartilhar e perseverar.

Quem escreveu



Andrea P. Ferrara @apferrara

Enfermeira e mestre em Saúde Pública pela USP. Voluntária do GIV - Grupo de Incentivo à Vida desde 2005, onde coordena projetos para as juventudes. Mulher cis, com mobilidade reduzida, briguenta com as questões de acessibilidade, leitora compulsiva, falante, curiosa e indecisa, adora conhecer cafeterias pela cidade de São Paulo.


Laura Ribeiro @lau_m_s_r

Travesti, 30 aninhos bem vividos, professora de inglês online, estudante de pedagogia pela UFSCar Sorocaba, escritora, poeta, militante, comunista, feminista, arrisco fazer uns desenhos e sou apreciadora de um beck bolado no final de um dia exaustivo. Natural de Salto de Pirapora - SP. Odeio coentro e vivo com HIV desde os meus 17 anos.


Gabriela Fonseca

Professora em uma cidadela no interior de São Paulo durante o dia. Pedagoga em formação durante as noites, escritora amadora nos tempos livres e mulher vivendo com HIV em tempo integral.


Rafuska Queiroz @rafuskaqueiroz

Rafaela para os não íntimos, cresceu com um “bichinho” mais conhecido como HIV. Escreve e lê poesias nas horas mais aleatórias, mas principalmente quando a vhivência era um silêncio ensurdecedor. A morte a levaria bem cedo, mas (r)existiu e chegou aos 30.


Psicóloga friendly, feminista, mulher cisgenero bissexual, criadora de conteúdo e ativista em saúde, direitos humanos e HIV/AIDS.


Laura Daviña

Designer e publicadora, coordena o projeto Publication Studio São Paulo (PSSP). Desde 2013 atua compreendendo a publicação como verbo, na busca de diálogo e trocas em oficinas e ações gráficas. Às vezes se aventura na poesia para expressar afetos e impactos dessas trocas.


Alan

Estudante de História pela USP. Além de ciências humanas logicamente, aprecia literatura fantástica e ficção científica. Gosta de mapas, geopolítica e vídeo-games.


Leandro Noronha da Fonseca

Mestrando em Letras pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS/CPTL). Especialista em Mídia, Informação e Cultura pelo Centro de Estudos Latino-americanos sobre Cultura e Comunicação (CELACC/ECA/USP). Jornalista e integrante do Coletivo Contágio (@coletivocontagio), grupo artístico formado por pessoas vivendo com HIV/aids.


Tiago Sales

Mineiro, biólogo, educador e doutorando em Educação no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Uberlândia (PPGED/UFU). Curioso e sonhador, ensaia poéticas de vida, desejo e afeto.


Victor Bebiano @vibebiano

Artista visual performer, cantor e compositor, voluntária do GIV - Grupo de Incentivo à Vida, estudante de cinema e criador de conteúdo, da zona leste de São Paulo para o mundo. Tem 24 anos de idade (e de carreira!), 6 vivendo com HIV e 2 como athivista em HIV/AIDS. Conhecida artisticamente como VIBE, lançou em 2020 seu single ”OLHE PRA MIM”, cantando a importância da visibilidade das pessoas vivendo com HIV para quebra de estigmas.


Rafa Roller @roller.jpg

Designer, editor de vídeo e ilustrador, sou arteiro autodidata desde 1993. Voluntário do GIV, falo sobre HIV e bissexualidade nas redes sociais. Além de viver com HIV vivo com a paixão por transformar ideias em conteúdo artístico e acredito que o papel da arte é nos fazer enxergar o mundo de uma forma diferente.


Tiago Cesar

Economista pelo Centro Universitário Fundação Santo André, pós graduando em Gestão Tributária pela USCS. Paulista com sangue mineiro correndo nas veias. 30 anos repletos de histórias para contar. Vivendo uma nova aventura no mundo mágico da escrita.


Marcos Tolentino @marcosoat

Bicha vivendo com hiv, soteropolitano e libriano. Historiador formado pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), onde desenvolve o seu Doutorado em História. Voluntário da Casa 1 e do Acervo Bajubá. Produtor e entrevistador do podcast Passagem só de Ida.

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projeto gráfico e capa realizado coletivamente por integrantes da oficina “Escritas de si(da)” com apoio de Laura Daviña (estúdio PSSP). O livro foi composto nas tipografias Lexend e Quem mono. A primeira tiragem foi produzida no estúdio PSSP, em dezembro de 2021.





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