como fazer?

TIQQUN

como fazer?

Don’t know what I want,
but I know how to get it.

Sex Pistols, Anarchy in the UK

I


Vinte anos. Vinte anos de contrarrevolução.
De contrarrevolução preventiva.
Na Itália.

E fora dela.

Vinte anos de um sono eriçado de cercas de arame farpado, povoado de vigias. De um sono dos corpos, imposto pelo toque de recolher.

Vinte anos. O passado não passa. Porque a guerra continua. Se ramifica. Se prolonga.

Numa reticulação mundial de dispositivos locais. Numa calibragem inédita das subjetividades. Numa nova paz superficial.

Uma paz armada

feita sob medida para cobrir o desenvolvimento de uma imperceptível guerra civil.

Há vinte anos, era

o punk, o movimento de 77, a área da Autonomia,

os índios metropolitanos e a guerrilha difusa.

De repente surgia,

como saído de alguma região subterrânea da civilização,

todo um contra-mundo de subjetividades

que não queriam mais consumir, que não queriam mais produzir.

que já não queriam nem mesmo ser subjetividades.

A revolução era molecular, a contrarrevolução não o foi menos. ELES dispuseram ofensivamente,

depois duradouramente,

toda uma complexa máquina de neutralizar o que é portador de intensidade. Uma máquina de desativar tudo o que poderia explodir.

Todos os divíduos de risco, os corpos indóceis,

as agregações humanas autônomas.

E então foram vinte anos de estupidez, de vulgaridade, de isolamento e de desolação.

Como fazer?


Se reerguer. Reerguer a cabeça. Por escolha ou por necessidade. Pouco importa, na verdade, de agora
em diante.

Se olhar nos olhos e se dizer que a gente tá recomeçando. Que todos saibam, o quanto antes.

A gente tá recomeçando.

Acabou-se a resistência passiva, o exílio interior, o conflito por subtração, a sobrevivência. A gente tá recomeçando. Em vinte anos, a gente teve tempo pra ver. A gente entendeu direitinho. A demokracia para todos, a luta “antiterrorista”, os massacres de Estado, a reestruturação capitalista e sua Grande Obra de depuração social,
por seleção,

por precarização,

por normalização,

por “modernização”.

A gente viu, entendeu. Os métodos e os objetivos.
O destino que ELES reservam para nós. E o que ELES nos negam. O estado de exceção. As leis que colocam a polícia, a administração, a magistratura acima das leis. A judicialização, a psiquiatrização, a medicalização de tudo o que sai do quadro. De tudo o que escapa.

A gente viu, entendeu direitinho. Os métodos e os objetivos.


Quando o poder estabelece em tempo real sua própria legitimidade, quando sua violência se torna preventiva

e seu direito é um “direito de ingerência”,

então já de nada serve ter razão. Ter razão contra ele.

É preciso ser mais forte, ou mais astuto. É por isso também

que a gente recomeça.

Recomeçar nunca é recomeçar alguma coisa. Nem retomar um assunto ali onde a gente o tinha deixado. O que a gente recomeça é sempre outra coisa. É sempre inaudito. Porque não é o passado que nos impele a isso, mas precisamente o que nele

não

adveio.

E porque somos também nós mesmos, então, que recomeçamos. Recomeçar quer dizer: sair da suspensão. Restabelecer o contato entre nossos devires.

Partir,

de novo,

dali onde estamos,

agora.


Por exemplo, há golpes

que ELES já não nos darão mais.

O golpe da “sociedade”. A transformar. A destruir.
A tornar melhor.

O golpe do pacto social. Que alguns quebrariam enquanto outros podem fingir “restaurá-lo”.

Esses golpes, ELES já não nos darão mais.

É preciso ser um elemento militante da pequena-burguesia planetária, um verdadeiro cidadão

para não ver que ela já não existe mais,

a sociedade.

Que ela implodiu. Que já não é mais que um argumento para o terror infligido por aqueles que dizem a

re/presentar.

A ela que se ausentou.

Tudo o que é social se tornou alheio a nós.

Nos consideramos absolutamente livres de qualquer obrigação, de qualquer prerrogativa, de qualquer pertencimento

sociais.

“A sociedade”,

é o nome que recebeu muitas vezes o Irreparável,

entre aqueles que queriam também fazer dele

o Inassumível.

Quem rejeita esse engodo deverá tomar

um passo de distância.

Operar

um ligeiro deslocamento

em relação à lógica comum

ao Império e à sua contestação,

a lógica da mobilização,

em relação a sua comum temporalidade,

a da urgência.


Recomeçar quer dizer: habitar essa distância. Assumir
a esquizofrenia capitalista no sentido de uma crescente
faculdade de dessubjetivação.
Desertar mas guardando as armas.

Fugir, imperceptivelmente.

Recomeçar quer dizer: juntar-se à secessão social, à opacidade, entrar em desmobilização,

subtraindo hoje da tal ou tal rede imperial de produção-consumo os meios de viver e de lutar para, no momento escolhido,

afundá-la.

Falamos de uma nova guerra,

de uma nova guerra de resistentes. Sem front nem uniforme, sem exército nem batalha decisiva.

Uma guerra cujos focos se desdobrem à distância dos fluxos mercantis ainda que conectados a eles.

Falamos de uma guerra latente. Que tem o tempo.

De uma guerra de posição.

Que se trava ali onde estamos.

Em nome de ninguém.

Em nome de nossa própria existência,
que não tem nome.


Operar esse ligeiro deslocamento.

Já não temer seu tempo.

“Não temer seu tempo é uma questão de espaço”.

Na okupa. Na orgia. Na revolta. No trem ou na cidadezinha ocupada. Na busca, em meio a desconhecidos, de uma free party inencontrável. Faço a experiência

desse ligeiro deslocamento. A experiência

de minha dessubjetivação. Devenho

uma singularidade qualquer. Um jogo se insinua entre minha presença e todo o aparato de qualidades que estão ordinariamente vinculadas a mim. Nos olhos de um ser que, presente, quer me estimar pelo que eu sou, saboreio a decepção, sua decepção por ver que me tornei tão comum, tão perfeitamente acessível. Nos gestos de outro, uma inesperada cumplicidade. Tudo o que me isola como sujeito, como corpo dotado de uma

configuração pública de atributos, sinto que se derrete. Os corpos se desfiam em seus limites. Em seus limites, se indistinguem. Bairro após bairro, o qualquer arruína a equivalência. E alcanço uma nudez nova,

uma nudez imprópria, como que vestida de amor.

E lá se pode escapar sozinho da prisão do Eu?


Na okupa, na orgia, na revolta, no trem ou na cidadezinha ocupada. Nos encontramos.

Nos encontramos

como singularidades quaisquer. Isto é,

não sobre a base de um pertencimento comum,

mas de uma comum presença.

É essa

nossa necessidade de comunismo. A necessidade de espaços de noite, onde possamos

nos encontrar

para além

de nossos predicados.

Para além da tirania do reconhecimento. Que impõe o re/conhecimento como distância

final entre os corpos. Como inelutável separação.


Tudo o que ELES – o noivo, a família, o entorno, a empresa, o Estado, a opinião – reconhecem em mim, é por aí que acreditam me pegar.

Pelo recordar constante do que sou, de minhas qualidades, ELES gostariam de me abstrair de cada situação. Querem extorquir de mim em toda e qualquer circunstância uma fidelidade a mim mesmo que é uma fidelidade aos meus predicados.

ELES esperam de mim que me comporte como homem, empregado, desempregado, mãe, militante ou filósofo.

ELES querem conter entre os marcos de uma identidade o curso imprevisível de meus devires.

ELES querem me converter à religião de uma coerência que ELES escolheram para mim.


Quanto mais sou reconhecida, mais meus gestos se encontram travados, interiormente travados. Eis-me capturada na malha ultrafina do novo poder. Nas redes impalpáveis da nova polícia: A POLÍCIA IMPERIAL DAS QUALIDADES. Há toda uma rede de dispositivos em que me moldo para me “integrar”, e que incorporam em mim essas qualidades.

Todo um pequeno sistema de fichamento, de identificação e de

“policiamento” mútuos.

Toda uma prescrição difusa da ausência.

Todo um aparato de controle comporta/mental,
que visa ao panoptismo,

à privatização transparencial, à atomização.

E no qual me debato.


Preciso me tornar anônima. Para estar presente. Quanto mais anônima sou, mais estou presente. Preciso de zonas de indistinção

para acessar o Comum.

Para já não me reconhecer em meu nome. Para já não escutar em meu nome senão a voz que o chama.

Para fazer consistir o como dos seres, não o que são, mas como são o que são. Sua forma-de-vida.

Preciso de zonas de opacidade onde os atributos, mesmo criminais, mesmo geniais,

já não separam dos corpos.


Devir qualquer. Devir uma singularidade qualquer, não está dado. Sempre possível, mas nunca dado.

Há uma política da singularidade qualquer.

Que consiste em arrancar do Império

as condições e os meios,

mesmo intersticiais,

de se experimentar como tal. É uma política, porque supõe uma

capacidade de enfrentamento,

e porque uma nova agregação humana

lhe corresponde.

Política da singularidade qualquer: liberar esses espaços nos quais já nenhum ato é atribuível a qualquer corpo dado.

Onde os corpos reencontram a aptidão ao gesto que a engenhosa

distribuição dos dispositivos metropolitanos – computadores, automóveis, escolas, câmeras, celulares, academias, hospitais, televisões, cinemas, etc. – tinha roubado deles.

Reconhecendo-os.

Imobilizando-os.

Fazendo com que girem no vazio.

Fazendo a cabeça existir separada do corpo.

Política da singularidade qualquer.

Um devir-qualquer é mais revolucionário que qualquer ser-qualquer.

Liberar espaços nos libera cem vezes mais que qualquer “espaço liberado”. Mais que de colocar em ato um poder, gozo de colocar em circulação minha potência.

A política da singularidade qualquer reside na ofensiva.
Nas circunstâncias, nos momentos e nos lugares em que serão arrancados as circunstâncias, os momentos e os lugares

desse anonimato,

de uma parada momentânea em estado de simplicidade,

a ocasião de extrair de todas as nossas formas a pura adequação à presença, a ocasião de estar e ser, enfim,

aí.




II


COMO FAZER? Não O que fazer? Como fazer?
A questão dos meios. Não a dos fins, a dos objetivos,

do que é preciso fazer, estrategicamente, no absoluto.

A questão do que a gente pode fazer, taticamente, em situação,

e da aquisição dessa potência.

Como fazer? Como desertar? Como isso funciona? Como conjugar

minhas feridas e o comunismo? Como permanecer em guerra sem perder a ternura?

A questão é técnica. Não um problema. Os problemas são rentáveis. Alimentam os experts.

Uma questão.

Técnica. Que se desdobra em questão das técnicas de transmissão dessas técnicas.

Como fazer? O resultado sempre contradiz a meta. Porque postular uma meta

ainda é um meio,

outro meio.


O que fazer? Babeuf, Tchernychevski, Lenin. A virilidade clássica reivindica um analgésico, uma miragem, alguma coisa. Um meio para se ignorar ainda mais um pouco. Enquanto presença. Enquanto forma-de-vida. Enquanto ser em situação, dotado de inclinações.

De inclinações determinadas.

O que fazer? O voluntarismo como derradeiro niilismo. Como niilismo próprio à virilidade clássica.

O que fazer? A resposta é simples: submeter-se uma vez mais à lógica da mobilização, à temporalidade da urgência. Sob pretexto de rebelião. Postular fins, palavras. Tender à sua realização. À realização das palavras. Enquanto isso, deixar a existência para mais tarde. Colocar-se entre parêntesis. Alojar-se na exceção de si. À distância do tempo. Que passa. Que não passa. Que para.

Até... Até a próxima. Meta.


O que fazer? Dito de outra maneira: inútil viver. Tudo o que você não viveu, a História devolverá pra você.

O que fazer? É o esquecimento de si que se projeta sobre o mundo.

Como esquecimento do mundo.


Como fazer? A questão do como. Não do que um ser, um gesto ou uma coisa é, mas de como ele é isso que ele é. De como seus predicados se relacionam com ele.

E ele com eles.

Deixar ser. Deixar ser a hiância entre o sujeito e seus predicados. O abismo da presença.

Um homem não é “um homem”. “Cavalo branco” não é “cavalo”.

A questão do como. A atenção ao como. A atenção à maneira como uma mulher é, e não é,

uma mulher – são necessários dispositivos para fazer de um ser de sexo feminino “uma mulher”,

ou de um homem de pele negra “um negro”.

A atenção à diferença ética. Ao elemento ético. Às irredutibilidades que o atravessam. O que se passa entre os corpos numa ocupação é mais interessante que a própria ocupação.

Como fazer? quer dizer que o enfrentamento militar com o Império deve ser subordinado à intensificação das relações no interior do nosso partido. Que o político não é mais que um certo grau de intensidade no seio do elemento ético. Que a guerra revolucionária não deve mais ser confundida com sua representação: o momento bruto do combate.


A questão do como. Devir atento ao ter-lugar das coisas, dos seres. Ao seu acontecimento. À obstinada e silenciosa saliência de sua temporalidade própria sob o esmagamento planetário de todas as temporalidades

pela da urgência.

O O que fazer? como ignorância programática disso. Como fórmula inaugural do desamor atarefado.


O O que fazer? volta. Há alguns anos. Desde a metade dos anos 90 mais do que desde Seattle. Um revival da crítica finge enfrentar o Império

com os slogans, com as receitas dos anos 60. Salvo que, desta vez, se simula. Se simula a inocência, a indignação, a boa consciência e a necessidade de sociedade. Volta-se a colocar em circulação toda a velha gama dos afetos socialdemocratas. Dos afetos cristãos.

E, de novo, temos manifestações. As manifestações mata-desejo. Em que não se passa nada.

E que já não manifestam senão

a ausência coletiva.

Para sempre.


Para os que têm nostalgia de Woodstock, da maconha, de maio de 68 e do militantismo, aí estão as contra-cúpulas. ELES reconstruíram o cenário, mas sem o possível.

Eis o que o O que fazer? prescreve hoje: ir ao outro lado do mundo contestar a mercadoria global

para voltar, depois de um grande banho de unanimidade e de separação mediatizada,

a se submeter à mercadoria local.

Na volta, está a foto no jornal... Todos sozinhos juntos! Era uma vez...

Que juventude!...

Pena para os poucos corpos vivos perdidos ali, buscando em vão um

espaço para seu desejo.

Voltam um pouco mais entediados. Um pouco mais esvaziados. Reduzidos.

De contra-cúpula em contra-cúpula, acabarão por fim compreendendo. Ou não.


A gente não contesta o Império a respeito de sua gestão. A gente não critica o Império.

A gente se opõe às forças dele.

Ali onde a gente tá.

Dizer sua opinião sobre tal ou tal alternativa, ir lá onde ELES nos chamam, tudo isso já não faz sentido. Não existe projeto global alternativo ao projeto global do Império. Porque não existe projeto global do Império. Existe uma gestão imperial. Toda gestão é ruim. Os que reivindicam outra sociedade fariam melhor começando por ver

que já não existe sociedade. E talvez cessassem então de ser aprendizes de gestores.

Cidadãos. Cidadãos indignados.


A ordem global não pode ser tomada por inimiga. Diretamente.

Pois a ordem global não tem lugar. Pelo contrário. É, antes, a ordem dos não-lugares.

Sua perfeição não é ser global, mas ser globalmente local. A ordem global é o esconjuro de todo e qualquer acontecimento porque é a ocupação

acabada, autoritária, do local.

A gente só pode se opor à ordem global localmente. Por meio da extensão das zonas de sombra sobre os mapas do Império. Colocando-as em

contato progressivamente.

Subterraneamente.


A política que vem. Política da insurreição local contra a gestão global. Da presença recuperada sobre a ausência de si. Sobre a alienação cidadã, imperial. Recuperada pelo roubo, a fraude, o crime, a amizade, a inimizade, a conspiração.

Pela elaboração de modos de vida que sejam também

modos de luta.

Política do ter-lugar.

O Império não tem lugar. Administra a ausência fazendo pairar por toda a

parte a ameaça palpável da intervenção policial.
Quem procura no Império um adversário contra o
qual se medir encontrará o aniquilamento preventivo.

Ser percebido, daqui em diante, é ser vencido.

Aprender a devir indiscerníveis. A nos confundir. Voltar a ter gosto pelo anonimato,

pela promiscuidade.

Renunciar à distinção,

Para desarticular a repressão:

propiciar ao enfrentamento as condições mais favoráveis.

Devir astutos. Devir impiedosos. E para isso

devir quaisquer.


Como fazer? é a pergunta das crianças perdidas. Aquelas a quem não se disse. Que têm os gestos inseguros. A quem nada foi dado. Cuja criaturalidade, cuja errância, não cessa de se manifestar.

A revolta que vem é a revolta das crianças perdidas.

O fio da transmissão histórica foi cortado. Até mesmo a tradição revolucionária nos deixa órfãos. O movimento operário, sobretudo. O movimento operário que se transformou em instrumento de uma integração superior no Processo. No novo Processo, cibernético, de valorização social.

Em 1978, foi em seu nome que o PCI, o “partido de mãos limpas”, lançou a caça aos Autônomos.

Em nome de sua concepção classista do proletariado, de sua mística da sociedade, do respeito ao trabalho, ao útil e à decência.

Em nome da defesa dos “avanços democráticos” e do Estado de direito. O movimento operário que terá sobrevivido a si mesmo no operaísmo. Única crítica existente do capitalismo do ponto de vista da Mobilização Total. Doutrina temível e paradoxal,

que terá salvado o objetivismo marxista não falando mais senão de “subjetividade”. Que terá levado a um refinamento inédito a denegação do como.

A reabsorção do gesto em seu produto.

A urticária do futuro anterior.

Do que cada coisa terá sido.

A crítica se tornou vã. A crítica se tornou vã porque equivale a uma ausência. Quanto à ordem dominante, todo o mundo sabe a que se ater. Já não temos necessidade de teoria crítica. Já não temos necessidade de professores. A crítica gira a favor da dominação, de agora em diante. Até mesmo a crítica da dominação.

Ela reproduz a ausência. Fala-nos dali onde não estamos. Nos impulsiona para outro lugar. Nos consome.
É covarde. E fica ali bem protegidinha

quando nos manda para a carnificina.

Secretamente enamorada de seu objeto, não para de mentir para nós.

Daí a brevidade dos idílios entre proletários e intelectuais engajados.

Esses casamentos de conveniência em que não se tem a mesma ideia nem do prazer nem da liberdade.

Mais que de novas críticas, é de novas cartografias

que necessitamos.

Cartografias não do Império, mas das linhas de fuga para fora dele.

Como fazer? Precisamos de mapas. Não de mapas do que está fora do mapa. Mas mapas de navegação. Mapas marítimos. Ferramentas de orientação. Que não procuram dizer, representar o que existe no interior dos diferentes arquipélagos da deserção, mas nos indicam como chegar até eles.

Portulanos.


Terça-feira, 17 de setembro de 1996, pouco antes do amanhecer. O ROS (Reagrupamento Operacional eSpecial) coordena em toda a península a detenção

de 70 anarquistas italianos.

Trata-se de pôr um fim a 15 anos de investigações infrutíferas a respeito dos anarquistas insurrecionalistas.

A técnica é conhecida: fabricar um “arrependido” e fazê-lo denunciar a existência de uma

vasta organização subversiva hierarquizada.

Depois, com base nessa criação quimérica, acusar todos aqueles a que se quer neutralizar de fazerem parte dela.

Ainda uma vez, secar o mar para pegar os peixes.

Mesmo quando se trata apenas de um tanque minúsculo.

E de uns poucos lambaris.


Uma “nota informativa de serviço” escapou ao ROS

em relação a este assunto.

Ele aí expõe sua estratégia.

Fundado nos princípios do general Dalla Chiesa, o ROS é o protótipo do serviço imperial de contrainsurreição.

Ele trabalha sobre a população.

Alí onde uma intensidade se produziu, ali onde algo se passou, ele é o

french doctor da situação. Aquele que instala,

sob o pretexto de profilaxia,

os cordões sanitários cujo objetivo é isolar

o contágio.

O que ele teme, ele diz. Nesse documento, ele escreve. O que ele teme é

“o pântano do anonimato político”.

O Império tem medo.

O Império tem medo de que nos tornemos quaisquer. Um meio delimitado, uma organização combatente. Ele não os teme. Mas uma constelação expansiva de okupas, de fazendas autogeridas, de moradias coletivas, de ajuntamentos fine a se stesso, de rádios, de técnicas e de ideias. O conjunto conectado por uma intensa circulação dos corpos e dos afetos entre os corpos. Aí são outros quinhentos.


A conspiração dos corpos. Não dos espíritos críticos, mas das corporeidades críticas. Eis o que o Império teme. Eis o que lentamente advém.

com o aumento dos fluxos,

da deserção social.

Há uma opacidade inerente ao contato dos corpos.
E que não é compatível com o reinado imperial de uma luz que já não ilumina as coisas

senão para desintegrá-las.

As Zonas de Opacidade Ofensiva não estão

por ser criadas.

Já estão aí, em todas as relações em que ocorre uma verdadeira colocação em jogo dos corpos.


O que é preciso é assumir que fazemos parte dessa opacidade. E se apropriar dos meios

de estendê-la,

de defendê-la.

Por toda parte onde se consegue desarticular os dispositivos imperiais, arruinar todo o trabalho cotidiano do Biopoder e do Espetáculo para

excepcionar da população uma fração de cidadãos. Para isolar novos untorelli. Nessa indistinção reconquistada

forma-se espontaneamente

um tecido ético autônomo,

um plano de consistência separatista.


Os corpos se unem. Recuperam o fôlego. Conspiram.

Que tais zonas estejam condenadas ao esmagamento militar pouco

importa. O que importa,é, a cada vez,

preparar uma via de retirada segura o bastante. Para voltar a se juntar em

outra parte.

Mais tarde.

O que servia de base ao problema do O que fazer? era o mito da greve geral.

O que responde à pergunta Como fazer? é a prática da GREVE HUMANA.

A greve geral dava a entender que havia uma exploração limitada

no tempo e no espaço,

uma alienação parcial, devida a um inimigo reconhecível, portanto derrotável.

A greve humana responde a uma época em que os limites entre trabalho e

vida esmaecem completamente

Em que consumir e sobreviver,

produzir “textos subversivos” e precaver-se dos efeitos mais nocivos da civilização industrial,

praticar esportes, fazer amor, ser pai ou tomar Prozac.

Tudo é trabalho.

Pois o Império gere, digere, absorve e reintegra

tudo o que vive.

Mesmo “o que eu sou”, a subjetivação que não desminto hic et nunc,

tudo é produtivo.

O Império pôs tudo para trabalhar.

Idealmente, meu perfil profissional coincidirá com meu próprio rosto.

Mesmo que não sorria.

Afinal, as caretas do rebelde vendem muito bem.


Império, quer dizer que os meios de produção se converteram em meios de controle ao mesmo tempo que o inverso ocorria.

Império significa que de agora em diante o momento político domina o momento econômico.

E contra isso, a greve geral já não pode nada.

O que é preciso opor ao Império é a greve humana.

Que nunca ataca as relações de produção sem atacar ao mesmo tempo as relações afetivas que as sustentam.

Que mina a economia libidinal inconfessável,

restitui o elemento ético – o como – reprimido em cada contato entre os corpos neutralizados.

A greve humana é a greve que, ali onde ELES esperavam

tal ou qual reação previsível,

tal ou qual tom contrito ou indignado,

PREFERE NÃO.

Se esquiva ao dispositivo. Satura-o, ou o explode.

Se recobra, preferindo

outra coisa.

Outra coisa que não está circunscrita nos possíveis autorizados pelo dispositivo. No guichê de tal ou tal serviço social, nos caixas de tal ou tal supermercado, numa conversa polida, durante uma intervenção da polícia,

de acordo com a relação de forças,

a greve humana faz o espaço entre os corpos consistir,

pulveriza o double bind em que estão presos,

acua-os à presença.

Existe todo um luddismo por inventar, um luddismo das engrenagens humanas que fazem girar o Capital.


Na Itália, o feminismo radical foi uma forma embrionária da greve humana. “Basta de mães, de mulheres e de filhas, destruamos as famílias!” era um convite ao gesto de romper os encadeamentos previstos,

de liberar os possíveis comprimidos.

Era um atentado aos comércios afetivos escrotos, à prostituição ordinária.

Era um apelo à superação do casal, como unidade elementar de gestão

da alienação.

Apelo a uma cumplicidade, pois.

Prática insustentável sem circulação, sem contágio.

A greve das mulheres convocava implicitamente a dos homens e das

crianças, convidava a esvaziar as fábricas, as escolas, os escritórios e as prisões, a reinventar para cada situação outra maneira de ser, outro como.

A Itália dos anos 70 era uma gigantesca zona de greve humana.

As autorreduções, os assaltos, os bairros okupados, as manifestações

armadas, as rádios livres, os inumeráveis casos de “Síndrome de Estocolmo”, inclusive as famosas cartas de Aldo Moro preso, já perto do final, eram

práticas de greve humana.

Os stalinistas falavam então de “irracionalidade difusa”, só pra ter uma ideia.


Há escritores também

nos quais se está o tempo todo em greve humana.

Em Kafka, em Walser,

ou em Michaux,

por exemplo.


Adquirir coletivamente essa faculdade de sacudir as familiaridades.

Essa arte de frequentar em si mesmo

o hóspede mais inquietante.


Na guerra presente,

Em que o reformismo de urgência do Capital deve vestir os hábitos do revolucionário para se fazer ouvir,

em que os combates mais demokratas, os das contra-cúpulas, recorrem à ação direta,

um papel está reservado a nós.

O papel de mártires da ordem democrática,

que golpeia preventivamente todo corpo que poderia golpear.

Eu deveria me deixar imobilizar diante de um computador enquanto as centrais nucleares explodem, enquanto ELES brincam com meus hormônios ou de me envenenar.

Deveria entoar a retórica da vítima. Já que, é bem sabido,

todo o mundo é vítima, até os próprios opressores.

E saborear que uma discreta circulação do masoquismo

volte a dar encanto à situação.


A greve humana, hoje, é

recusar assumir o papel da vítima. Atacar esse papel.

Se reapropriar da violência. Arrogar-se a impunidade.


Fazer os cidadãos petrificados compreenderem

que mesmo que não entrem em guerra, já estão nela de qualquer jeito.

Que ali onde ELES dizem que é isso ou morrer,
é sempre, na realidade,

isso e morrer.


Assim,

de greve humana

em greve humana, propagar a insurreição,

onde já não há senão,

onde somos todos, singularidades

quaisquer.







NENHUM DIREITO RESERVADO

versão da tradução colaborativa: Fabio Tremonte, Fernando Scheibe e Kamilla Nunes realizada em dezembro de 2016.

PSSP