Não violência, possibilidade de luto e crítica do individualismo
Judith Butler
Judith Butler
Meiji University, 2018
Estou muito honrada por estar aqui hoje. Espero fazer um argumento em favor da ética e da política da não violência e quero sugerir que tal argumento não faz sentido sem um compromisso com a igualdade. O que a não violência tem a ver com igualdade? Podemos nos opor à violência, mas se algumas vidas são consideradas como tendo o direito de serem protegidas da violência, enquanto outras não, então enfrentamos uma desigualdade entre os seres-vivos. Essa desigualdade implica que certas vidas serão defendidas com mais afinco do que outras. Se alguém se opõe à violência praticada contra vidas humanas –ou, de fato, contra outros seres vivos–, isso pressupõe que nos opomos ao dano causado a essas vidas porque elas são valiosas, e somos contra matar ou deixar que elas morram porque são valiosas. Se essas vidas fossem perdidas como resultado da violência, essa perda seria registrada como uma perda, e isso significa que consideramos essas vidas dignas de luto. Portanto, se desejamos buscar uma ética da não violência, também devemos nos comprometer com uma política de igualdade. Não apenas algumas vidas devem ser protegidas contra agressões e morte, mas todas as vidas.
E, no entanto, neste mundo, as vidas não são igualmente valorizadas; a exigência por proteção nem sempre é ouvida ou reconhecida. Uma razão para essa situação é que essas vidas não são consideradas dignas de pesar ou enlutáveis (passíveis de luto). Em outras palavras, não há compromisso público de proteger certas vidas de agressões ou morte. As razões para isso são muitas: racismo, xenofobia, homofobia e transfobia, misoginia e o desprezo sistêmico pelos pobres e desfavorecidos. Vivemos, diariamente, tendo conhecimento de grupos de pessoas anônimas abandonadas até a morte nas fronteiras de países com fronteiras fechadas, no Mar Mediterrâneo, em países onde a pobreza e a falta de acesso a alimentos e cuidados de saúde se tornaram tanto normal quanto esmagadoras. Uma ética da não violência exige que lutemos para criar um mundo mais justo e igualitário. Mas também, se nos opusermos à violência, devemos entender as novas e diversas formas que esta assume. Como resultado, uma posição ética para a não violência deve (a) demonstrar um compromisso substancial com a igualdade social (b) empreender uma crítica às formas contemporâneas de violência. Para satisfazer a primeira condição, precisamos formular um imaginário igualitário que se tornaria parte de nossa prática de não violência, uma prática de resistência, vigilante e esperançosa. Mas também devemos entender como a violência funciona agora para que possamos saber a melhor maneira de se contrapor a ela.
A fim de desenvolver uma ética e política de não violência, devemos perguntar quais compromissos temos umas com as outras. Por que uma vida deveria se preocupar com o bem-estar de outra vida? Por que essa vida deve proteger a vida de outra pessoa? Minha primeira afirmação é que o individualismo não fornece uma base para responder a essa pergunta e que precisamos conduzir uma crítica ao individualismo para entender a interdependência das vidas. Primeiro, essa noção de interdependência nos ajuda a entender a paridade das vidas e a formular uma noção de igualdade que não dependa do individualismo. Embora eu me refira aqui à vida humana, o argumento, desejo mostrar, se aplica à vida dos animais e aos processos de vida, ao ambiente onde há vida. Em segundo lugar, essa noção de interdependência nos ajuda a entender por que por em prática ou permitir a agressão ou violência contra outra pessoa constitui um ataque às relações sociais pelas quais cada uma delas é definida.
Portanto, a seguir, voltarei primeiro ao problema do individualismo, a fim de enfatizar a importância dos laços sociais e da interdependência para a compreensão de um relato não individualista da igualdade social. E procurarei vincular essa idéia de interdependência à não violência. Aceito que a agressão é parte integrante dos laços sociais baseados na interdependência e que a não violência depende de uma luta contínua para "lapidar" com habilidade a agressão, ou seja, encenar suas formas limitadas e não prejudiciais. Nem nosso compromisso com a igualdade social nem a não violência fazem sentido sem uma crítica do individualismo como ponto de partida para a filosofia moral e política. Em um mundo em que o valor da vida é distribuído de forma desigual, exigimos uma crítica da distribuição biopolítica –ou necropolítica– da possibilidade de luto: a ideia de que a perda de algumas vidas é condenável e outras vidas não tanto, ou nada. Voltarei a esse conceito brevemente.
Crítica do individualismo:
a hipótese do Estado de Natureza
Alguns representantes da história do pensamento político liberal nos fazem acreditar que emergimos neste mundo social e político a partir de um estado de natureza. E nesse "estado de natureza", já somos, por alguma razão, indivíduos e estamos em conflito uns com os outros. Não nos é dado a entender como nos tornamos indivíduos, nem nos é dito precisamente por qual razão o conflito é a primeira de nossas relações passionais, ao invés da dependência ou do vínculo. A visão hobbesiana, que tem sido a mais influente na formação de nossa compreensão dos contratos políticos, nos diz que um indivíduo quer o que o outro tem, ou que ambos reivindicam o mesmo território. Que lutam entre si para perseguir seus interesses egoístas e estabelecer seu direito pessoal à propriedade, à natureza e ao domínio social. É claro que o estado de natureza sempre foi uma ficção, como Rousseau admitiu abertamente, mas tem sido uma ficção poderosa, um modo de imaginar que se torna possível sob condições do que Marx chamou de economia política. Funciona de várias maneiras: nos deu uma condição contrafactual pela qual podemos avaliar nossa situação contemporânea; ofereceu um ponto de vista, da mesma maneira que a ficção científica, a partir do qual é possível ver a especificidade e a contingência da organização política do espaço e tempo, de paixões e interesses, no presente. Ao escrever sobre Rousseau, Jean Starobinski sugeriu que o conceito de Estado de Natureza fornecia uma estrutura imaginária na qual havia apenas um indivíduo na cena: auto-suficiente, sem dependência, saturado de amor próprio e sem qualquer necessidade de outros. De fato, onde não há pessoas para falar sobre, não há problema de igualdade; mas uma vez que outras criaturas humanas vivas entram em cena, o problema da igualdade e do conflito surge imediatamente. Por que é esse o caso?
Marx critica essa parte da hipótese do Estado de Natureza que coloca o indivíduo como primário. Nos manuscritos de 1844, quando, com grande ironia, ele ridicularizou a noção de que no começo os humanos estão, como Robinson Crusoe, sozinhos em uma ilha, fornecendo seu próprio sustento, vivendo independente de outros, sem sistemas de trabalho e sem qualquer organização comum da vida política e econômica, Marx escreve: “Não nos desloquemos, como [faz] o economista nacional quando quer esclarecer [algo], a um estado primitivo imaginário. Um tal estado primitivo nada explica. Ele simplesmente empurra a questão para uma região nebulosa, cinzenta. (…) Nós partimos de um fato nacional-econômico presente.” (Manuscritos econômico-filosóficos, p. 80). Marx pensou que poderia descartar a ficção em favor dos fatos atuais, mas isso não o impediu de fazer uso dessas mesmas ficções para desenvolver sua crítica à economia política. Elas não representam a realidade, mas se soubermos como ler essas ficções, elas produzirão um comentário sobre a realidade atual que, de outra forma, não conseguiríamos. Entramos na ficção para discernir a estrutura, mas também para questionar: o que pode e o que não pode ser figurado aqui, o que pode ser imaginado e através de quais termos?
Por exemplo, aquela figura solitária e plena de Robinson Crusoé era invariavelmente um adulto e um homem, a primeira figura do “homem natural” – aquele cuja auto-suficiência é eventualmente interrompida pelas demandas da vida social e econômica, mas não como conseqüência de sua condição natural. De fato, quando outros entram em cena, o conflito começa, ou assim conta a história. Então, no começo (considerando tempo) e mais fundamentalmente (ontologicamente), os indivíduos perseguem seus interesses egoístas, se chocam e lutam, mas o conflito só é arbitrado em meio a uma socialidade regulada, uma vez que cada indivíduo presumivelmente buscaria, antes de entrar o contrato social, perseguir e satisfazer suas necessidades, independentemente de seus efeitos sobre os outros e sem nenhuma expectativa de resolução, sem resolver os desejos concorrentes ou conflitantes. Assim, o contrato surge, de acordo com essa ficção, antes de mais nada como um meio de resolução de conflitos. Cada indivíduo deve restringir seus desejos, impor limites à sua capacidade de consumir, tomar e agir, a fim de viver de acordo com as leis geralmente vinculativas. Para Hobbes, essas leis se tornam o "poder comum" pelo qual a natureza humana é restringida. O estado de natureza não era exatamente um ideal, e Hobbes não exigia "um retorno" a esse estado, como Rousseau às vezes fazia, pois ele imaginava que as vidas seriam tolhidas, que o assassinato seria irrestrito se não houvesse governo comum e nenhum conjunto de leis vinculativas para subjugar o caráter conflituoso da natureza humana. O estado de natureza era, para ele, uma guerra, mas não uma guerra entre estados ou autoridades existentes, mas a guerra travada por um indivíduo soberano contra outro – uma guerra, poderíamos acrescentar, de indivíduos que se consideravam soberanos. Pois não está claro se essa soberania pertence a um indivíduo concebido como separado do estado, que transfere sua própria soberania para o estado, ou se o estado já está lá como o horizonte desse imaginário, uma vez que a soberania surge como um conceito teológico político antes do surgimento de sujeitos que se dizem dotados de soberania ou que perderam sua soberania a um poder externo.
Sejamos claros: o estado de natureza difere em Locke, Rousseau e Hobbes, e mesmo no Leviatã de Hobbes, há indiscutivelmente pelo menos cinco versões. O estado de natureza pode postular um tempo antes da sociedade; pode procurar descrever civilizações estrangeiras que são consideradas pré-modernas; pode oferecer uma psicologia política responsável por conflitos civis; pode descrever a dinâmica do poder político na Europa do século XVII. Não estou conduzindo exatamente uma revisão acadêmica, mas quero considerar como o estado de natureza se torna a ocasião para um certo tipo de imaginação, se não uma fantasia, ou o que Rousseau chama de "uma ficção pura", que se preocupa centralmente com o conflito violento e sua resolução.
Se entendermos o estado de natureza como uma ficção ou uma fantasia (e as duas não são a mesma coisa, como discutiremos), então que conjunto de desejos ou vontades ele representa ou articula? Sugiro que esses desejos não pertençam apenas ao indivíduo nem a uma vida psíquica autônoma, mas que mantêm uma relação crítica com a condição social e econômica sobre a qual comentam. Podem funcionar como uma imagem invertida, um comentário crítico, uma justificativa ou, de fato, uma crítica implacável. O que é postulado como uma origem ou uma condição original é imaginado retrospectivamente e, portanto, postulado como resultado de uma sequência que começa no mundo social já constituído. E, no entanto, há um desejo de postular uma fundação, uma origem imaginária como uma forma de explicar esse mundo, ou talvez escapar de sua dor e alienação. Essa linha de pensamento poderia facilmente nos levar a um caminho psicanalítico se levássemos a sério a idéia de que uma fantasia funciona como fundação para a vida humana em seus aspectos sociais. Isso pode muito bem ser verdade. Meu desejo não é substituir a fantasia pela realidade, mas aprender a ler uma fantasia e que isso possa render pistas sobre a estrutura e a dinâmica das organizações historicamente constituídas de poder e violência, e como se relacionam à vida e à morte. De fato, eu mesma não poderei oferecer uma tréplica crítica a essa noção de um homem sem necessidades na origem da vida social sem envolver uma fantasia própria, que não começa comigo, mas me leva a seus termos articulando, por assim dizer, a sintaxe do social através de um imaginário diferente.
Uma característica bastante notável desse estado de natureza fantasioso, que é regularmente invocado como um "fundamento", é que, no início, aparentemente, existia um homem, e ele é um adulto e, por si só, auto-suficiente. Então, devemos ter em conta que essa história começa não no começo, mas no meio de uma história que não está para ser contada: logo na abertura da história, no momento que marca seu início, o gênero, por exemplo, já foi decidido. Independência e dependência foram separadas, e masculino e feminino são determinados em parte em relação a essa distribuição de dependência. A figura primária e fundadora do ser humano é masculina – isso não é surpresa; masculinidade é definida por sua falta de dependência (e isso não é exatamente novidade, mas continua de alguma forma sendo bastante surpreende). Mas o que parece interessante, e isso é verdade tanto para Hobbes quanto para Marx, é que o humano é, desde o início, um adulto.
Em outras palavras, o indivíduo que nos é apresentado como o primeiro momento do ser humano, o surgimento do ser humano no mundo, é colocado como se nunca tivesse sido criança, nunca precisou ser provido, nunca dependeu dos pais ou das relações de parentesco ou instituições sociais para sobreviver e crescer e, presumivelmente, aprender. Esse indivíduo já foi escalado como um gênero, não por uma atribuição social mas porque ele é um indivíduo e a forma social do indivíduo nessa cena é masculina, ele é um homem. Então, se queremos entender essa fantasia, precisamos perguntar qual versão do humano e qual versão de gênero ela representa e que apagamentos são necessários para que essa representação funcione? A dependência é, por assim dizer, escrita fora da imagem do homem original; ele é, de alguma forma, e desde o início, erecto, capaz, sem nunca ter sido apoiado por outros, sem ter se segurado ao corpo de outro para se firmar, sem ter sido alimentado quando não podia se alimentar, sem jamais ter sido envolto em um cobertor para se aquecer por outro alguém. Ele surgiu, cara sortudo, da imaginação dos teóricos liberais como um adulto pleno, sem relações, equipado com raiva e anseios, às vezes capaz de felicidade ou de auto-suficiência que dependia de um mundo natural preventivamente desprovido de outras pessoas. Devemos então admitir que uma aniquilação ocorreu antes da cena narrada, que uma aniquilação inaugura a cena: todo mundo é excluído, negado e desde o início. Isso é talvez uma violência inaugural? Não é uma tabula rasa, mas uma lousa bem limpa. Mas o mesmo acontece com a pré-história do chamado estado de natureza. Como o estado de natureza deveria ser, em uma de suas variantes mais influentes, uma pré-história da vida social e econômica, a aniquilação da alteridade constitui a pré-história dessa pré-história, sugerindo que não estamos apenas elaborando uma fantasia, mas dando uma história dessa mesma fantasia – sem dúvida um assassinato que não deixa vestígios.
O contrato social, como muitas teóricas feministas argumentaram (Carole Pateman entre elas) já é um contrato sexual. Mas, mesmo antes das mulheres entrarem em cena, existe apenas esse homem singular. Há em algum lugar uma mulher na cena, mas ela não toma forma como figura. Não podemos nem culpar a representação das mulheres na cena, porque ela não é representável. Uma expulsão de algum tipo ocorreu e, em seu lugar, é erguido o homem adulto. Supõe-se que ele deseje mulheres no curso das coisas, mas mesmo essa heterossexualidade postulada é livre de dependência e repousa sobre uma amnésia cultivada em relação à sua formação. Ele é compreendido a encontrar os outros primeiro de maneira conflituosa.
Por que se preocupar com essa influente fantasia hobbesiana na teoria política? Antes de tudo, ela coloca o conflito como base das relações sociais e estabelece o indivíduo como masculino. Como resultado, se procurarmos desenvolver uma compreensão diferente das relações sociais, que preveja a interdependência, devemos começar com uma crítica desse imaginário político para formular a nossa. Na verdade, não vou argumentar contra o caráter primário das relações conflitantes. Mas insistirei que o conflito pode ser entendido como uma característica da interdependência e que uma tendência compensatória de interdependência pode nos levar a compreender por que tanto a não violência quanto a igualdade radical ou substancial são possíveis e obrigatórias. Num espírito hobbesiano, Freud uma vez perguntou: por que não devemos assumir que a inimizade e a hostilidade são mais fundamentais que o amor? Eu não responderia dizendo que o amor é mais fundamental que a hostilidade. Pelo contrário, minha opinião é que a tensão entre amor e ódio é aquela que caracteriza todas as relações de dependência. A não violência, considerada como ethos, deve contar com essa ambivalência. Não sustento que exista uma região calma ou pacífica da alma que devemos cultivar e que somente essa prática subjugará a agressão e a destrutividade. Talvez a paz deva ser buscada agressivamente. Einstein, de fato, argumentou a favor de um "pacifismo militante", sugerindo precisamente uma forma agressiva de não violência. Se procurarmos entender a possibilidade de uma não violência agressiva que emerge no meio do conflito, ou seja, no próprio campo de força da violência, temos que investigar mais profundamente (a) a condição social da interdependência e (b) sua implicações para o compromisso com a não violência.
Dependência e Compromisso
Vamos então tentar uma história diferente que ajude a imaginar a igualdade e a não violência além do individualismo e de um estado primário de conflito social. Começa assim: todo indivíduo emerge no decorrer do processo de individuação. Ninguém nasce um indivíduo; se alguém se torna um indivíduo ao longo do tempo, ele ou ela não escapa às condições fundamentais da dependência no decorrer desse processo. Não podemos escapar dessa condição no tempo. Todos nós, independentemente de nossos pontos de vista políticos no presente, nascemos em uma condição de dependência radical. Ao refletirmos sobre essa condição quando adultos, talvez nos sintamos levemente insultados ou alarmados, ou talvez rejeitemos o pensamento ou até cheguemos a odiar a pessoa que fala conosco sobre esses tópicos. Talvez alguém com um forte senso de auto-suficiência individual fique realmente ofendido pelo fato de que houve um tempo em que não se podia alimentar-se ou não se sustentar sozinho. Mas, de fato, quero sugerir que ninguém realmente se sustenta; estritamente falando, ninguém se alimenta. Os estudos sobre deficiência nos mostraram que, para se deslocar pela rua, deve haver calçadas que permitam o movimento, principalmente se alguém se move apenas com uma cadeira ou com um instrumento de apoio. Mas a calçada também é um instrumento de apoio, assim como os semáforos e o meio-fio. Não são apenas os deficientes que precisam de apoio para se mover, ser alimentados ou mesmo respirar. Todas essas capacidades humanas básicas são suportadas de uma maneira ou de outra. Ninguém move, respira ou encontra comida que não é sustentada por um mundo que fornece um ambiente construído para a passagem, que prepara e distribui comida para que chegue até nossas bocas, um mundo que sustenta o ambiente que possibilita esse tipo de ar que podemos respirar sem medo de adoecer.
A dependência pode ser definida em parte como uma dependência de estruturas sociais e materiais, mas também do meio ambiente, de tudo o que torna a vida possível. Mas, apesar de nossas brigas com a psicanálise –e todo mundo tem uma briga, presumo, pois é isso que a psicanálise é, uma teoria e prática com a qual as pessoas brigam; de fato, não há psicanálise sem uma discussão com a psicanálise– talvez ainda possamos concordar que não superamos a dependência da infância quando nos tornamos adultos. Isso não significa que o adulto esteja em uma condição dependente da mesma maneira que o bebê, mas apenas que nos tornemos criaturas que constantemente imaginam uma auto-suficiência para descobrir que essa imagem de nós mesmos foi minada repetidamente no decorrer da vida. Essa é, obviamente, uma posição lacaniana, articulada de maneira mais famosa pelo estágio do espelho –o garoto alegre que pensa estar sozinho enquanto se olha no espelho e, ainda assim, observando-o, sabemos que a mãe, ou algum objeto obscuro– apoio (trotte bebê), o segura diante do espelho enquanto ele se contenta com sua auto-suficiência radical. Talvez neste momento possamos concordar que as concepções fundadoras do individualismo liberal são uma espécie de estágio do espelho, que ocorrem dentro de um imaginário desse tipo. Que suportes, que dependência, devem ser rejeitados para que a fantasia da auto-suficiência ocorra, para que a história comece com uma masculinidade atemporal do adulto?
A implicação dessa cena é que parece que a masculinidade é identificada com uma autossuficiência fantástica, e a feminilidade é identificada como o apoio que ela fornece, um apoio regularmente rejeitado. Essa imagem e história nos prendem a uma economia de relações de gênero que dificilmente nos serve. A heterossexualidade torna-se o quadro presumível e deriva da teoria da mãe e do filho, que é apenas uma maneira de imaginar as relações de apoio à criança. A estrutura de gênero da família é um dado adquirido, incluindo, é claro, o apagamento do trabalho de cuidados da mãe e a total ausência do pai na cena dos cuidados com as crianças. E se aceitamos tudo isso como a estrutura simbólica das coisas, e não como um imaginário específico, aceitamos a operação de uma lei que só pode ser alterada de maneira incremental e a longo prazo. A teoria que descreve essa fantasia, essa assimetria e essa divisão sexual do trabalho pode acabar reproduzindo e validando seus termos, a menos que nos mostre outra saída, a menos que questione sobre a cena anterior ou externa à cena, o momento, por assim dizer, antes do começo.
Então, vamos passar, por assim dizer, da dependência para a interdependência e ver como isso altera nossa compreensão de vulnerabilidade, conflito, idade adulta, socialização, as perspectivas tanto para a não violência quanto para maior igualdade biopolítica. Faço essa pergunta porque, tanto no nível político quanto no econômico, os fatos da interdependência global são muitas vezes, com grande frequência, negados. Ou eles são explorados. Obviamente, anúncios de empresas comemoram um mundo globalizado, mas essa ideia de expansão corporativa captura apenas um sentido de globalização. A soberania nacional pode estar diminuindo, e ainda novos nacionalismos insistem nesse quadro. Uma razão pela qual é tão difícil convencer um governo como o meu que o aquecimento global é uma ameaça real para o futuro do mundo habitável é que seus direitos de expandir a produção e os mercados, explorar a natureza, e seus direitos ao lucro, permanecem centrados em aumentar a riqueza e o poder nacional à custa do bem-estar de todos os seres vivos do mundo; talvez eles não concebam a possibilidade de que o que eles fazem afeta todas as regiões do mundo, e que o que acontece em todas as regiões do mundo afeta a própria possibilidade da continuação de um ambiente habitável, do qual todos nós dependemos. Ou talvez eles saibam que estão envolvidos em atividades globalmente destrutivas e que isso também parece um direito nacional, um poder, uma prerrogativa que não deve ser comprometida por nada e nem por ninguém. Eles quebram contratos e convênios que unem países a fim de afirmar o princípio de que os interesses da nação vêm em primeiro lugar. E o interesse da nação, como sabemos, é identificado como os interesses dos ricos em expandir o crescimento e o lucro, independentemente de qualquer dano ao meio ambiente que cause, ou quaisquer desigualdades que ele intensifique, e qualquer risco para a vida das populações que ele representa.
A idéia de compromissos globais que servem a todos os habitantes do mundo, humano e animal, está tão longe da consagração neoliberal do individualismo quanto poderia, e, no entanto, é regularmente descartada como ingênua. Algumas pessoas perguntam em tom mais ou menos incrédulo, como você ainda pode acreditar nas responsabilidades e compromissos globais? Isso é certamente ingênuo, dizem eles. Mas quando pergunto, você quer viver em um mundo onde ninguém está em defesa de compromissos globais, eles costumam dizer não. Por isso, quero argumentar que somente ao declarar essa interdependência é possível formular responsabilidades globais, incluindo obrigações para com os migrantes, os ciganos, aqueles que vivem em situações precárias ou mesmo aqueles que estão sujeitos a ocupação e guerra, aqueles que estão sujeitos ao racismo institucional e sistêmico, mulheres sujeitas a violência doméstica e pública, assédio no local de trabalho e pessoas não conformes com gênero expostas a danos corporais, incluindo encarceramento e morte. Uma nova idéia de igualdade só pode emergir de uma interdependência mais completamente imaginada, uma imaginação que se desdobra em práticas e instituições, em novas formas de vida cívica e política. Curiosamente, a igualdade imaginada dessa maneira não seria uma igualdade entre os indivíduos. Obviamente, é bom que uma pessoa seja tratada como igual a outra – sou totalmente a favor da lei anti-discriminação; não me interpretem mal. Mas essa formulação, por mais importante que seja, nem sempre nos diz em virtude de qual conjunto de inter-relações sociais a igualdade política se torna pensável. Podemos distinguir entre grupos, mas o que une grupos? Podemos distinguir entre indivíduos, mas o que liga os indivíduos uns aos outros? Quando a igualdade é entendida como um direito individual ou de grupo (como é o direito à igualdade de tratamento), pressupõe um sujeito desprovido de direitos, mas não nos diz imediatamente quais responsabilidades sociais temos entre nós e por que a desigualdade falha nessas responsabilidades. Formular a igualdade com base nas relações que definem nossa existência social duradoura, que nos define como criaturas vivas sociais, é fazer uma reivindicação social, uma reivindicação coletiva da sociedade, se não uma reivindicação ao social como a estrutura dentro da qual nossa imaginações de igualdade, liberdade e justiça tomam forma e fazem sentido. Quaisquer que sejam as reivindicações de igualdade então formuladas, elas emergem das relações entre as pessoas, em nome dessas relações e desses laços, mas não de um sujeito individual. A igualdade é, portanto, uma característica das relações sociais definidas, em parte, por uma interdependência cada vez mais reconhecida e declarada.
Como entendemos a interdependência? E qual o papel da vulnerabilidade recíproca na nossa compreensão da interdependência? Ser dependente implica vulnerabilidade: alguém é vulnerável à estrutura social da qual depende; portanto, se a estrutura falhar, será exposta a uma condição precária. Se é assim, não estamos falando sobre a minha vulnerabilidade ou a sua, mas sim uma característica da relação que nos une e às estruturas e instituições maiores das quais dependemos para a continuação da vida. Vulnerabilidade não é exatamente o mesmo que dependência. Eu dependo de alguém, algo ou alguma condição para viver. Mas quando essa pessoa desaparece, ou esse objeto é retirado, ou essa instituição social se desfaz, sou vulnerável a ser desapropriada, abandonada ou exposta de maneiras que podem muito bem não ser habitáveis. O entendimento relacional da vulnerabilidade mostra que não somos totalmente separáveis das condições que tornam nossa vida possível. Em outras palavras, nunca somos totalmente individuados – e esse é um dos aspectos felizes de nossas vidas sociais.
Uma implicação dessa visão é que os compromissos que nos vinculam socialmente seguem a condição de interdependência que torna possível nossa vida. A própria organização política da vida exige que a interdependência –e a igualdade que ela implica– seja reconhecida por meio de políticas, instituições, sociedade civil e governo. Se aceitarmos a proposta de que existem, ou deveriam existir, responsabilidades globais, ou seja, compromissos compartilhados globalmente e que devam ser considerados vinculativos, elas não podem ser reduzidas às obrigações que os Estados-nações têm entre si. Eles deveriam ter caráter pós-nacional, atravessando fronteiras e navegando em seus termos, uma vez que as populações na fronteira, ou atravessando as fronteiras, apátridas, refugiados, são aquelas incluídas na maior rede de interrelações implícitas nos compromissos globais.
Tenho argumentado que a tarefa que imaginei não é superar a dependência para alcançar a auto-suficiência, mas aceitar a interdependência como condição de igualdade (e aceitar as formas de interdependência que promovem um reconhecimento igual do valor da vidas). Essa formulação encontra um desafio imediato e importante. Afinal, existem formas de poder colonial que buscam estabelecer a chamada “dependência” dos colonizados, e esses tipos de argumentos procuram fazer da dependência uma característica patológica essencial das populações que foram colonizadas. Essa implantação da dependência confirma racismo e colonialismo; identifica a causa da subordinação de um grupo em uma característica psicossocial do próprio grupo. O colonizador, como argumentou Albert Memmi, entende-se como o adulto em cena, aquele que pode tirar uma população colonizada de sua dependência "infantil" para uma idade adulta iluminada. Encontramos essa figura do colonizado como criança no famoso ensaio de Kant, "O que é a iluminação?" Mas a verdade é que o colonizador depende dos colonizados, pois quando os colonizados se recusam a permanecer subordinados, o colonizador é ameaçado pela perda do poder colonial. Por um lado, parece bom superar a dependência se alguém se tornou dependente de uma estrutura colonial, ou dependente de um estado injusto ou de um casamento abusivo. Romper com essas formas de dependência pode fazer parte do processo de emancipação, e é aqui que importa como entendemos o estado que desejamos alcançar após consequências de dependência e exploração indesejadas. Queremos nos tornar indivíduos autônomos buscando formas individuais de liberdade? Ou queremos lutar por maior igualdade social e liberdade? Por qual versão da igualdade lutamos? E qual versão da liberdade? Se rompermos os laços da dependência em um esforço para superar a exploração, isso significa que agora valorizamos a independência e negamos a interdependência social? Existe uma maneira de ser parcialmente individualizado sem perder de vista nossa interdependência uma com a outra e com o mundo dos vivos? Se a independência se tornar um modo de romper vínculos com todas as formas de interdependência, isso incluiria aqueles pelos quais somos explorados e aqueles pelos quais somos sustentados. Se a “independência” nos devolve à soberania do indivíduo ou mesmo do Estado-nação, então os entendimentos pós-soberanos da coabitação do mundo tornam-se impensáveis. Nesse caso, retornamos a uma versão de auto-suficiência que implica conflito sem fim. Afinal, é apenas a partir de uma noção renovada e reavaliada de interdependência entre regiões e hemisférios que podemos começar a pensar sobre a ameaça ao meio ambiente, o problema da favela global, o racismo sistêmico, a condição dos apátridas cuja migração é uma responsabilidade global comum, mesmo a superação mais completa dos modos coloniais de poder, a oposição à violência contra mulheres e pessoas trans, o abandono biopolítico de populações consideradas indignas de luto.
A situação de tantas populações cada vez mais sujeitas a precariedade impossível suscita para nós a questão das obrigações globais. Se perguntarmos, por que algum de nós deveria se importar com aqueles que sofrem à distância, a resposta não se encontra em justificativas paternalistas, mas no fato de que habitamos o mundo juntos em relações de interdependência. Nossos destinos são, por assim dizer, entregues um ao outro.
Então, nos afastamos da figura de Robinson Crusoe com a qual começamos. Sugeri que o sujeito encarnado é definido por sua falta de auto-suficiência. E que não devemos lamentar essa condição. Ficamos, no entanto, com outro problema: sob quais condições a interdependência se torna um cenário de agressão, conflito e violência? Como entendemos o potencial destrutivo desse vínculo social e como a ética e a política da não violência lidam com esse potencial destrutivo?
Violência e Não Violência
A interdependência levanta essa questão da destrutividade, que faz parte, em potencial, de qualquer relação viva. Esta pode romper a relacionalidade intermitente ou permanentemente, é a ruptura potencial em ação em todas as relações sociais. Se nossas práticas éticas e políticas permanecerem restritas a um modo de vida ou de tomada de decisão individual, ou a uma ética da virtude que reflete sobre quem somos como indivíduos, corremos o risco de perder de vista aquela interdependência que estabelece uma versão incorporada da igualdade, bem como a possibilidade de destrutividade, e as atribuições éticas pelas quais ela é contida. Que diferença para o nosso pensamento implicaria tal estrutura? A maioria das formas de violência está comprometida com a desigualdade, independentemente de esse compromisso ser ou não explicitamente tematizado. E a maneira como a decisão é concebida, se deve ou não usar a violência em qualquer ocasião, faz uma série de suposições sobre aqueles com relação a quem a violência deve ser travada ou não. Por exemplo, não é possível intervir contra a violência se o ser vivo que não deveria ser morto não puder ser nomeado ou conhecido. Se a pessoa, o grupo, o povo não são considerados vivos ou percebidos como vivendo, como entender o comando para não matar? Faz sentido supor que apenas aqueles que são considerados vivos podem ser efetivamente nomeados e salvaguardados por uma interdição contra a violência. Mas um segundo ponto também é necessário. Se a luta contra a morte repousa na presunção de que todas as vidas são valiosas, que elas carregam valor como vidas, em seu status de seres vivos, a universalidade da alegação é boa apenas na condição de que o valor se estenda igualmente a todos os seres vivos. Isso significa que temos que pensar não apenas nas pessoas, mas nos animais, e não apenas nas criaturas vivas, mas nos processos vivos, nos sistemas e nas formas de vida.
Há mais um ponto. Uma vida deve ser passível de luto, ou seja, sua perda deve ser conceitualizável como uma perda, para que uma interdição contra a violência e destruição inclua essa vida entre os seres vivos a serem protegidos da violência. A condição sob a qual algumas vidas são mais dignas do luto do que outras significa que a condição de igualdade não pode ser alcançada. A conseqüência é que a proibição de matar, por exemplo, se aplica apenas às vidas que são passíveis de luto, mas não àquelas que são consideradas indignas de luto, àquelas que não são lamentadas e já são consideradas perdidas, nunca totalmente vivas. Desse modo, a disparidade na proporção de vidas enlutáveis precisaria ser abordada para que uma ética da não violência trabalhe com o pressuposto de igual valor entre vidas; a distribuição desigual da possibilidade de luto pode ser uma abordagem para entendermos a concepção díspar de seres humanos e outras criaturas dentro de um cenário de desigualdade ou, de fato, dentro de uma estrutura de violenta rejeição. Afirmar que a igualdade social se estende formalmente a todos os seres humanos é contornar a questão fundamental de como o humano é concebido ou, melhor dizendo, quem é compreendido como ser humano reconhecível e valioso, e quem não é. Para que a igualdade faça sentido como um conceito, deve pressupor essa extensão formalizada a todos os seres humanos, mas, mesmo assim, fazemos uma suposição de quem é incluído na categoria humana, quem é parcialmente incluído ou totalmente excluído, quem é totalmente vivo ou parcialmente morto, quem seria enlutado ou lamentado em caso de perda e quem não seria lamentado porque está efetivamente morto socialmente. Por esse motivo, não podemos tomar o humano como fundamento de nossa análise, nem tomar como ponto de partida o estado de natureza considerado como fundamento: o humano é um conceito historicamente variável, articulado distintivamente no contexto das formas não igualitárias de poder social e político; o campo do humano é constituído por exclusões básicas, assombrado pelos números que não são levados em conta em seu cálculo. Na verdade, estou questionando como a distribuição desigual da possibilidade de luto entra e distorce nossas formas deliberadas de pensar sobre violência e não violência. Pode-se supor que a consideração da possibilidade de luto seja referente apenas àquelas pessoas que estão mortas, mas meu argumento é que essa enlutabilidade é operacional mesmo em vida e que é uma característica atribuída aos seres vivos, marcando seu valor dentro de um esquema valorativo desigual e sustentando diretamente a questão da igualdade social e justiça em torno de como esses seres são tratados. Ser passível de luto é ser interpelada de tal maneira que você sabe que sua vida importa, que a perda de sua vida faria diferença, que seu corpo é tratado como um organismo capaz de viver e prosperar, cuja precariedade deve ser minimizada, a quem devem estar disponíveis condições e recursos para o crescimento. Não seria apenas uma outra pessoa que o cumprimenta com convicção ou atitude, mas um princípio regulador que estrutura a organização social da saúde, alimentação, abrigo, emprego, vida sexual, vida social e cívica.
Se aceitarmos a noção de que todas as vidas são igualmente passíveis de luto e que o mundo político deve ser devidamente organizado de tal maneira que esse princípio seja afirmado na organização da vida econômica e institucional, chegamos a uma conclusão diferente e talvez até outra maneira de abordar o problema da não violência. Afinal, se uma vida, desde o início, é considerada enlutável, serão feitos todos os esforços para salvaguardar essa vida ou apoiá-la, minimizando a probabilidade de dano e destruição. Esta não é apenas uma obrigação que um sujeito tem para com outro: isto implica na reorganização da vida política, dos modos de distribuição econômica, e também na distribuição igualitária da possibilidade de luto.
A idéia da igualdade na possibilidade de luto vincula-se à interdependência e à questão de por que, e como, praticar a não violência de forma militante. E, no entanto, a organização social da violência e do abandono, atravessando os mecanismos soberanos e biopolíticos do poder, constitui o horizonte contemporâneo em que devemos refletir sobre a prática da não violência. Se a prática permanecer restrita a um modo de vida ou tomada de decisões individual, perdemos de vista a interdependência que por si só articula o caráter relacional da igualdade, bem como a possibilidade de destruição constitutiva das relações sociais.
Por todas essas razões, argumento que a posição ética da não violência deve estar ligada a um compromisso com a igualdade radical. E, mais especificamente, a prática da não violência exige uma oposição às formas biopolíticas de racismo e lógicas de guerra que regularmente fazem distinção entre as vidas que valem a pena salvaguardar e aquelas que não valem – que são danos colaterais ou populações concebidas como obstruções a objetivos políticos e militares. Além disso, temos que considerar de que forma uma lógica de guerra tácita entra no gerenciamento biopolítico das populações: se os migrantes vierem, eles nos destruirão, destruirão a cultura, destruirão a Europa ou o Reino Unido. Essa convicção então concede licença para destruição violenta – ou a morte lenta na vida de campos de detenção – contra populações que são fantasmagoricamente interpretadas como puro receptáculo de destruição. De acordo com essa lógica de guerra, é uma questão de vida, a vida dos refugiados ou a vida daqueles que reivindicam o direito de serem defendidos contra os refugiados. Nesse caso, a versão racista e paranóica da autodefesa autoriza a destruição de uma população. Países como o Japão defenderam a ética e a política da não violência especialmente desde os atentados catastróficos de Hiroshima e Nagasaki. Continua a ser imperativo defender essa filosofia e prática, que não se baseia no individualismo nem nas prerrogativas do poder do Estado. Em sua forma atual, a não violência emerge das práticas cotidianas de movimentos populares que conhecem a história da destruição e buscam preservar a vida desta terra não apenas para um país, mas para todos os povos.
Não há como praticar a não violência sem primeiro distinguir violência e não violência, e isso se torna difícil em um mundo em que esses termos são usados de maneira estratégica para apoiar os interesses do Estado. Como sabemos, a violência contra as pessoas em manifestações e protestos é cada vez mais justificada em nome da segurança, nacionalismo e neofascismo. Essa violência é negada quando a denominam força legítima. Por outro lado, a crítica do estado através do exercício da liberdade e expressão política é freqüentemente chamada de "violenta". Assim, o estado monopoliza sua violência, chamando seus críticos de violentos: sabemos isso desde Gramsci e de Benjamin.
Podemos nos desesperar e concluir que violência e não violência são termos relativos e que não podemos, em nosso mundo atual, distinguir de maneira clara entre os duas. Mas essa não é a conclusão necessária ou desejável. Na minha opinião, devemos ter cuidado com aqueles que afirmam que a violência é necessária para conter ou controlar a violência – eles apenas acrescentam violência ao mundo. Opor-se à violência neste mundo exige entender que a violência nem sempre toma a forma do golpe. Os poderes que abandonam as populações à morte lenta, ou instantânea, presumem que aquelas pessoas que morreram geralmente não são consideradas passíveis de luto; suas vidas não serão lamentadas, elas carregam menos valor do que aquelas que vivem e são defendidas e preservadas. Para nos opor a esses modos de poder que realizam a desigualdade radical através das formas de lidar com a morte, precisamos questionar: que tipo de vida é elegível como uma vida que vale a pena ser preservada? E cuja perda não seria registrada como perda? Que imaginário demográfico opera na ética, na política e nos governos em que as vidas que são passíveis e luto e as inelutáveis são regularmente –e fatalmente– distinguidas?
Se operamos dentro de um horizonte político em que a violência não pode nem ser identificada porque assume novas formas biopolíticas de abandono, onde as vidas são anuladas do reino dos vivos antes mesmo de serem mortas, não seremos capazes de pensar, saber e agir de maneira que incorpore o político ao ético – que entenda a reivindicação de compromissos sociais e relacionais na esfera global. De certo modo, temos que expandir o horizonte desse imaginário destrutivo no qual ocorrem tantas desigualdades e anulações. Devemos combater aqueles que estão comprometidos com a destruição sem reproduzir sua destrutividade. Essa é a tarefa e o compromisso de uma ética e política não violentas.
Não precisamos de uma nova formulação do estado de natureza, mas precisamos de um estado alterado de percepção, um outro imaginário, que nos desorientaria do que está dado no presente político. Esse imaginário nos ajudaria a encontrar um caminho para uma vida ética e política na qual agressão e tristeza não se convertam imediatamente em violência, na qual poderemos enfrentar a dificuldade e a hostilidade de laços sociais que nunca escolhemos. Não precisamos amar umas às outras para sermos compromissadas a construir um mundo em que todas as vidas sejam sustentáveis. O direito de persistir só pode ser entendido como um direito social, a instância subjetiva de um compromisso social e global que carregamos uma para com a outra. Interdependente, nossa persistência é relacional, frágil, às vezes conflituosa e insuportável, às vezes empolgante e alegre. Muitas pessoas dizem que advogar pela não violência é irrealista, mas talvez elas estejam muito enamoradas pela realidade. Quando pergunto, você quer viver em um mundo em que ninguém argumenta em favor da não violência, onde ninguém defende essa impossibilidade, sempre respondem não. O mundo impossível é aquele que existe além do horizonte do nosso pensamento atual – não é o horizonte de uma guerra terrível nem o ideal de uma paz perfeita. É a luta sem fim necessária para preservar nossos laços contra tudo o que existe no mundo que tem o potencial de rasgá-los. Enfrentar e restringir a destruição é uma das afirmações mais importantes das quais somos capazes neste mundo. É a afirmação desta vida, ligada à sua e ao reino dos seres vivos.