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AMARA MOIRA
(fragmento inédito do meu monólogo em bajubá: parte em que estou trabalhando essa semana, com a protagonista tentando imaginar uma época em que travestis estavam começando a se tornar conhecidas)
Ditadura. E quando é que Ditadura impediu viado de dar? Acha que elas eram mais apertadas, mais comportadinhas? Bicha, não tinha HIV, travesti era a novidade: polícia podia ser uó (quer dizer, todo mundo olhando, ela até que era, só que sem ninguém ver, afe!), mas se teve uma época que a gente reinou, foi essa. Reinou assim, né, entre aspas: travesti cê sabe como goosta de um exagero. Porque era Rogéria pra cá, Roberta Close pra lá, Thelma Lipp, aí entrevista na tevê, programa da Hebe, o Chacrinha, clube do Bolinha, as musas cada dia capa de uma revista nova (e tou nem falando das pornôs, não, pensei logo é numa Manchete, uma Contigo, a Veja). Fora que, anos 70, 80, ninguém conhecia travesti de perto. Mona, curiosidade a mil, todo mundo querendo saber, ver, querendo provar. Travequeiro? Que que era igual mato nada! Mas, em compensação, era cada homão que aparecia, cada pai de família, vários cem por cento virgem de travesti. Guarda! Dava pra ver que eles eram virgem, eles tremiam, sabiam nem o que fazer com a mão. A glória era sair com um desses. A glória e a desgraça, porque a bicha, pra se apaixonar ali, de cara, era pá-pum. Desejada como se fosse mulher, sonho de toda travesti que se preze. Não é pra qualquer uma, lógico: apenas as mais belíssimas sabem o que é frequentar um restaurante grão-fino, entrar com o ocó de mãos dadas, ele com um puta tesão do tanto de olhares que você atrai. Travesti jamé que vai passar batida, ainda mais num lugar desses! E aí ele lá com tesão, mas também a tensão, medinho, porque pra ele fazer isso a bicha tem que ser muito da passável, aquelas que não tem quem diga que ela não é mulher. Só que essas mais mapozadas, mesmo elas sempre tem ali alguém que, não sei, uma fulana amiga de infância da sua mãe, mais de década que ela não vai na sua casa, mas ela tá lá comendo e é só ver você entrar, já
vem com: “Ronivaldo Júnior, não creio, é você? Égua, como cê tá bonito!” No meio do restaurante, pra todo mundo escutar. Ainda o nome maldito que papai botou em mim pra eu perpetuar o legado dele. Ele se arrependeu? Pensa! E eu odeio esse nome, ódio mortal, a não ser que seja pra afrontar o papai. Aí eu digo mesmo, Ronivaldo dos Santos Pereira Júnior, filho mais velho daquele senhor ali, ó. Reunião familiar é toda vez assim, ele vindo pra cima de mim, patada na cara, dizendo que esse bicho não é filho dele, não! Ah, não? Pois olha o meu RG se não, dois nominhos iguais do jeito que você queria. Mas isso é quando o papai tá, né? Quando não tá, é só o ódio mortal que eu tenho desse nome, ódio de quem diz ele em voz alta. Aquela fulaninha horrorosa, invejosa, mal comida de uma figa. Não é de propósito que ela faz? Cê acha! Recalque puro, essas mapôs não suportam ver a gente bem, a gente com os boys magia que elas nunquinha vão chegar nem perto. E os delas lá, pronto, tendo que olhar pra baixo pra não dar na cara o tesão que eles tão sentindo.
bruna david
Quero te contar
que sou sua
O telefone tocou
— Alô?
— Laurita? É Carmen, preciso te falar uma coisa.
Suspirei. Eu sabia exatamente a frase que viria a seguir.
— Uyara acabou de falecer. Tô te ligando do hospital.
Sentei-me na cadeira ao lado do telefone.
— Hospital das Clínicas, né? Tô indo aí.
— Não, Laura, não vem não. Você não precisa passar por isso. Eu te aviso quando tiver maiores informações sobre o velório e o sepultamento. Fica bem aí, tá?
E desligou o telefone.
Silêncio.
Acendi um cigarro e me sentei na frente da máquina de escrever. Tentei começar a escrever sobre Uyara, mas percebi que as palavras me escapavam. “Você gostaria dessa ironia”, sorri.
Afinal, tinha sido ela minha maior influência para abraçar a carreira de escritora e – pensei enquanto olhava a prateleira cheia de livros com meu nome – minha maior inspiração.
Engraçado pensar numa vida sem alguém que esteve nela desde o primeiro dia. Literalmente.
Pensei com doçura e amargor que ao me abandonarem na maternidade, me deram a sorte de ser encontrada pela família Pereira.
Tive conforto, proteção e o privilégio de ser quem eu sou.
Eram uma família incrível.
O pai, Lucio, era poeta e professor de história, apaixonado por pessoas e bares. Um homem a frente de seu tempo. Eu tinha 10 anos quando chegou com um pacote e, enquanto eu abria e achava um conjunto de calça e camisa, me disse: “Eu sei que você não se
ajeita com os vestidos”. Sereno e calmo até demais para angústia da esposa, Ana.
A mulher era um furacão. Quando jovem, era professora do primário e nos castigava com muito mais ferocidade que as outras crianças, mas nos defendia também. Era um exemplo como pessoa e como professora, mas os nervos não lhe ajudavam. Depois de enfartar por conta de uma criança, abandonou tudo e abriu sua própria loja (e depois fábrica) de doces. Fez todos nós trabalharmos com ela para “aprendermos uma coisinha ou outra”.
Éramos três crianças. Criados juntos, mas nunca obrigados a nos comportarmos como irmãos de sangue.
Jeremias, meu gêmeo de aniversário, era alegre, falante e já muito novo assumiu o papel de atendente na loja. Cativante, era querido por todas as pessoas.
Eu. Cresci menina macho, protegida por Ana e a cozinha da loja. Curiosa, lá dentro eu aprendi de tudo e virei responsável pelas contas, mas eu gostava mesmo era das palavras. Gostava de observar e descrever o mundo. Gostava de observar U.
U tinha uns anos a mais que nós. Nascida com pênis, sociabilizada como homem, porém sempre muito diferente do padrão. Gostava de usar os vestidos da mãe e as botas do pai. Era doce, atenciosa, tímida.
Nos casamos quando eu tinha 15 anos. Por amor. Por tédio. Durante muito tempo fomos alvo de comentários porque éramos o casal de trocados. U parou de sair de casa e eu comecei a tocar a fábrica de doces junto com Jeremias. Foram bons e prósperos anos.
Os pais – aliás, ninguém – se conformou quando Jeremias abandonou tudo e se juntou às tropas de Hitler. Ana e Lucio escolheram a resiliência, foram embora mato adentro e nós, Uyara e eu, escolhemos a resistência e decidimos vir embora para São Paulo.
Toda uma outra vida começara. Me peguei pensando no dia que Uyara chegou com um disco do Cazuza e disse:
— Ele escreveu uma música que foi de encomenda minha para você.
Na primeira estrofe de Exagerado, eu já tinha entendido:
Amor da minha vida
Daqui até a eternidade
Nossos destinos foram traçados
Na maternidade
Me abraçou como se não tivesse me visto durante anos. Seu corpo, meu velho conhecido, já não era mais o mesmo, mas me era tão familiar quanto minha própria pele.
Nesse dia, que não fazia muito tempo, Uyara já estava doente. Eu sabia, todo mundo sabia. O vírus chegou nas nossas vidas naquele ano: 1985. Junto com o fim da ditadura militar e o Rock in Rio. Fatos que traziam algum tipo de alívio para nós que chorávamos corpos mortos com mais frequência do que o saudável, respondendo sempre a mesma pergunta:
“Foi milico ou HIV?”
A ditadura não tinha sido páreo para Uyara.
Me levantei e comecei a andar pela casa. Repleta da vida dela, mesmo que não morasse mais aqui há mais de vinte anos.
Fui até o quarto que costumava ser de Olga, nossa filha sumida nos porões do DOPS, e abri a caixa de diários antigos que eu nunca tive coragem de jogar fora.
Uma grande parte deles tinha virado gibi de milico, afinal eram rica fonte de conteúdo sobre a “viadagem na cidade de São Paulo” – quem me disse foi o próprio militar empenhado em revistar minha casa e levar o que lhe era conveniente –, me sobrando apenas os registros de uma vida longínqua, interiorana.
Peguei um caderninho surrado e abri em qualquer página, como se fosse um versículo bíblico. Era dia 10 de outubro de 1928.
Depois de quase 5 dias dormindo naquele pulgueiro que as pessoas têm coragem de chamar de hotel, ouvindo o barulho do centro de São Paulo – que saudade que eu estava das minhas galinhas – e do ronco do J, já eu não podia crer que entrava na minha casa e sentia o cheiro do café de meu marido.
Ah, a santidade do lar, pensava eu enquanto reparava que a samambaia do quintal se encontrava mais murcha do que quando eu
havia deixado a casa. Tudo bem, tem uma rosa nova na roseira e o gato parece ligeiramente satisfeito com a minha chegada.
Encontro U no quarto de vestir que se assusta quando coloco as mãos em sua cintura.
— Não ouvi você chegar, me distraí no banho com a água perfumada. Disse enquanto dobrava as mangas da camisa.
Me abraçou e me levou de volta para a cozinha, onde, eu não tinha reparado, um bolo de milho fazia companhia para o bule de café.
Sentei-me na mesa e acendi um cigarro. U sentou-se na cadeira ao lado e me deu um beijo nos lábios.
— A casa ficou vazia esses dias. Fiquei me perguntando o quanto de solidão alguém pode aguentar.
— Também senti sua falta. Você não pode imaginar o desespero de estar entre as pessoas.
— Pelo menos me diga que os negócios aconteceram conforme esperávamos.
— Ah sim, claro. Seu irmão é um ótimo negociante, não é mesmo? E eles não puderam resistir à minha prancheta cheia de números favoráveis – Disse enquanto esticava as pernas em seu colo.
— Ótimo, fico feliz que os negócios da família estejam prosperando. Ainda bem que ouvi o conselho de minha mãe e deixei J assumir a empresa. E, melhor ainda – me olhou fixamente nos olhos – encontrei alguém que tivesse mais culhões com os números do que eu.
— Falando em culhões – me sentei ereta na cadeira – esses dias na capital foram interessantes.
— É, eu imaginava mesmo que você fosse me dizer isso – Percebi que U brincava com os botões do meu paletó jogado em cima da cadeira.
Silêncio.
Prestei atenção no canto dos passarinhos no jardim e percebi a tranquilidade que a presença daquela pessoa trazia para o meu coração.
— Não quero te preocupar com esquisitices do mundo lá fora, mas me deixe te contar uma coisa.
U me sorriu com os olhos enquanto servia uma caneca de café.
— Numa dessas tardes que seu irmão estava a se divertir pela cidade, me senti só e fui até uma lanchonete – reparei que suas sobrancelhas se levantaram – quando vi, estava rodeada de moças.
U começou a rir e me disse – Não vá me dizer que já estavam lhe oferecendo os dotes.
Ri também e lhe disse: sua sorte é que sou casada por amor.
Recebi outro beijo nos lábios e, enquanto apagava o cigarro, continuei:
— Porém infelizmente não é só de dotes de casamento que são feitas as viagens à São Paulo. Hoje mais cedo, a hora que esperávamos o trem, um zé alguém se estranhou comigo na estação e quando vi estávamos sendo levados para a delegacia.
— Delegacia, L?!
Com irritação, levantou-se da cadeira:
— Você deveria ter começado com essa prosa.
Respirei.
— Não foi nada demais. Os homens estavam bem preocupados com o fato de eu estar muito parecida com eles.
— Ignorantes e cheios de pretensão?
— Quem dera fosse – respondi com uma risada – se incomodaram mesmo com o fato de eu estar com roupas masculinas.
— Tão previsível quanto triste.
— Previsível foi terem perguntado a opinião “do marido” sobre isso, respondi de maneira cansada.
— E qual é a minha opinião?
— De que é melhor que eu me vista assim, pois estou protegendo o seu egoísmo.
U riu a plenos pulmões e chegou até a engasgar acendendo um cigarro.
— Que mais lhe disse em seu favor?
— O de sempre, meu amor. As modas femininas me dão nos nervos.
— E J?
— Calou-se e oportunamente se mostrou mais interessado na vista da janela.
Percebi que a tensão de U diminuía enquanto achava graça da situação.
— Aposto que ficaram lhe medindo pois acharam que te vestes muito bem. Disse enquanto abria um botão da minha camisa e sorria – nada mais inseguro que homens de pênis, você sabe.
— Eu sei muito bem. Inclusive havia lá um tipo, nem acho que era policial, mas muito curioso sobre meus costumes.
— Que tipos de curiosidade?
— Dos tipos de curiosidade de gente que não entende o mundo. E ainda tentou comparar alguns delitos com o que eu estava contando para ele, sobre trabalhar baixo o conforto de roupas masculinas.
— Que será mais prejudicial à sociedade, cem criminosos agindo fora da lei ou uma só mulher vestindo e pensando como os homens?
Me disse enquanto colocava minha mão por baixo de sua saia.
Fechei o livreto.
Definitivamente éramos outras pessoas.
Digo, eu sempre fui Laura. Foi a única coisa deixada para mim, bordada na roupinha que eu vestia quando me encontraram na porta do hospital. Sempre estive confortável na minha pele, pensei, mas tantos anos se passaram desde então que eu já quase não me reconhecia mais.
E me lembrei da primeira vez que U tentou ter uma conversa sobre isso:
— Acho que tem algo errado comigo.
— Você está doente?
— Não me sinto doente, mas não me sinto bem.
Para minha versão adolescente, não poderia ser mais óbvio.
— Não me venha dizer que está apaixonado. Bem que eu já estava desconfiando mesmo. Esses dias encontrei em seu quarto uma prancheta cheia de nomes de mulher desenhados.
Sorriu sem graça e me respondeu:
— A única mulher por quem eu sou apaixonado é você, Laura.
Levantei-me do chão do quarto e fui diretamente para a
máquina de escrever.
Querida Uyara,
Passei a minha vida toda escrevendo você e quase não consigo acreditar que é a última carta que eu te escrevo. E o pior, essa eu tenho certeza de que você nunca lerá. Afinal, quando você estava presa, eu escrevia duas cópias caso você não recebesse alguma. Mas, nossa, que angústia pensar em todas as vezes que eu te perdi nessa vida. Quando você sumiu ao se filiar ao Partido Comunista. Quando a ditadura te esqueceu no porão.
Quando você decidiu que a vida doméstica não era mais suficiente e saiu pelo mundo experimentando todos os corpos. Não que você tenha me abandonado, sabemos bem, mas isso aqui já não cabia. Você, ao fim, entendeu que o mundo era sua casa.
E me diz, agora que você não existe mais, eu serei de quem?
Impossível existir alguém como você.
Eu digo isso porque eu te vi lutar a minha vida toda.
A primeira luta, com você mesma, ao não se reconhecer no próprio corpo. Não se reconhecia na própria pele. Sabe, me lembro do jantar que você pediu para a família toda para que começássemos a te chamar de Uyara. Foi lindo ver o brilho nos seus olhos quando ouviu seu nome na boca dos seus pais.
A segunda, com o mundo. Essa sociedade de merda que te julgou, te bateu, te humilhou, te estuprou, te cuspiu na cara. Fingiu que você não era gente, mas se lambuzava na tua carne.
A terceira e derradeira luta, com esse vírus sacana que te tirou tudo. O sexo, o brilho nos olhos, a vida. Uma luta que nós perdemos com você.
Mas sabe, Uyara, a última coisa que eu quero dizer para você é que você sempre foi meu farol. A luz dos meus dias, minha alegria. Te ver nos cabarés sendo a diva que você nasceu para ser foi a coisa mais linda que eu já vi.
Não importava milico, não importava violência, não importava o mundo lá fora.
No palco, você era Uyara maravilha. A drag queen mais poderosa de São Paulo, ouso dizer, do Brasil.
Mas na verdade, na verdade mesmo, tudo o que eu via ali era o meu mundo todo. A coisa mais preciosa. O amor da minha vida.
Então eu quero mesmo é te contar que eu, para sempre, serei sua.
Laura.
Sequei o rosto. Era impossível viver em um mundo que não existisse mais Uyara.
FLECHA lemes
marius prairie da silva prado
marius prairie da silva prado
filho de eudoxia prado
de ares mysteriosos y andar amaciado
[ascendente: escorpião]
dono de um senso estético refinado
[sol:libra]
escrevia poemas emocionados
amou y foi amado
marius prairie da silva prado
deixou a alfaiataria pra estudar pomologia
pois
gostava também de estudar os frutos
em suas várias possibilidades
marius prairie da silva prado
em um dia ensolarado
saiu em horário de expediente
com seus sempre chiques trajes masculinos
engomados
y
cansado da vida de proletariado
parou o relógio às sete horas de um dia 15 do ano 1910
porque recusou a vender seu tempo para o heterocispatriarcado
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formigão
da história pra futuridades transmaskulino
ae monstro se liga o povo diz ke noiz é modinha mas a experiência é de miliano. a história não mostra muito não mas as fontes não nega, então essa é uma missão do nosso tempo. 522 ano desse ci$tema opressor heterossexualidade patriarkado racismo cisgeneridade vigente no Brasil mas tamo komo firmão na resistência pelo propósito de existir y noiz tá aki vivão y vivendo já é um frakasso do projeto de nekropolitika dos playboy. fiz uma aula kom a histórika kontemporânea Amara Moira ela deu a letra sobre travestigenere ter uma kaminhada de longa data nesse território ideia importante pá falar das minas das ke também tumultua na fronteira de gênero mas o ke mais instiga a minha vontade de saber é sobre os mano. antigamente tinha um kara mil grau lá nos idos da dékada de 1980 tá ligado mais um sobrevivente do ci$tema prisional kuando era menor não era kualker um não o kara era tipo A artikulado mol koletividade kom as detenta era alfa na matilha sua rebelião ser líder nato do teatro não tem pá ninguém um dos melhor eskritor poeta memo igual o pai aki. seu nome Anderson Herzer, vulgo Bigode ou Big o kara era embassado publikou uma peça pesada tio chamada A queda para o alto, saiu em 1982 pela Editora Vozes, vai segurando o malokeiro intelectual aí é dos meu, ligeiro nas palavra o livro era uma autobiografia na boa klássiko na literatura trans é poder falar na primeira pessoa também konta kom uns versinho pá na segunda parte. fikei sabendo tio nakele tempo kuase finzinho da ditadura tinha o boletim Chanacomchana eu um $ap44ta0 oníriko trans maskulino acho interessante essas ideia essas mina lá era do rolê lésbika feminista tá ligado movimento social fundamental pra bater de frente kom o machismo y o lesboódio onde o lesbianismo também tá na função pra pressionar o ci$tema y fazer kair as estrutura. nesse bagui aí do GALF na primeira edição
do boletim em 1982 as mina foi kolou no lançamento do livro do Herzer y eskreveu uma karta sobre o mano. só ke ramelaram trataram ele no feminino kom nome de batismo kriaram uma narrativa ke não batia a kom a realidade afirmando ke ele tinha essência no feminino inkonformado. não sei se foi na maldade mas foi zuado não kompreender a maskulinidade de Herzer komo uma experiência ke além de uma negação da mulheridade socialmente imposta, é uma expressão da autoimagem ke devia ser prezada y respeitada certo. kem fortaleceu o korre do Herzer foi o Eduardo Suplicy famoso polítiko do PT arrumou um trampo pro kara na Assembleia Legislativa y artikulou o lançamento do livro dele só ke foi vacilão no prefácio do livro chamando ele de ela y citando Lia Junqueira afirma ke Herzer possivelmente é uma mano ke anda nos pano y se posiciona dakele jeitão ke noiz admira por luto do falecido namorado. É um jeito de invizibilizar a experiência trans, komo se trans fosse fruto de trauma y não um outro modo de viver. o fato é ke se nomear Bigode é homenagem dele pro ex. outra fita ke pra cisgeneridade dessa époka kolokou uma bombeta pronto tem ke ser hetero. a sexualidade dos boyceta pode ser multipla karai. foda né mano a transfobia é pesada parte dessa kolonialidade branka ci$ patriarkal ht fazendo kom ke até nossos aliado saiam da postura pratikando essas pilantragem. porke já era, além do território eles invadiu mentalidades. a esperança tá em konhecer y eskrever nossa história y litera-eskura d.i.y kebrada porke são ferramentas pra entender nossa genealogia, sonhar-ficcionar, inkorporar o anti hegemoniko y aí trilhar kaminhos rumo a futuridades transmaskulino desenvolvendo nossa potência pro bem viver jow. meu sentimento memo pela morte trágika do malandro. mas independente parsa Herzer eterno.
formigão
Análise de fonte I
Ano 1877 edição 06124
O excerto de jornal mencionado acima é do século XIX, e inicia com os dizeres “mulher homem”. A notícia é sobre uma pessoa do sexo feminino que foi vista usando roupas designadas aos homens naquela sociedade aos homens. O flagrante ocorreu no período noturno na Rua Imperatriz. O jornal alega que a nacionalidade do elemento suspeito era italiana e que o mesmo se disfarçava de homem. Apessoa tida como delinquente foi conduzida a outro local e havia defensores que protestaram gerando luta corporal e teve como consequência prisões A reportagem usou o termo para designar a pessoa tida como infratora como “varonil filha de Eva” e excêntrica representante do belo sexo”.
formigão
Análise de fonte II
Ano 1905 edição 14644
O título da reportagem, “Vestida de homem”, aborda a prisão realizada na rua Líbero Badaró pelo 4º delegado Arthur Rudge e a pessoa foi levada para o posto policial localizado na Consolação.
A prisão foi no período noturno, o nome civil da pessoa encarcerada era Anna Ferreira, de alcunha Menina. Sua detenção se deu pelo fato da pessoa estar vestida com roupas masculinas e não dar nenhuma explicação do motivo.
dani silva
Fonte: Correio Paulistano
ANO 2110/Edição 01010
UM CASO NADA ORIGINAL – UMA PESSOA QUE INSISTE NO GÊNERO
PLANETA TERRA, 29 – Foi avistada uma pessoa transitando pelo Planeta com dizeres acerca de tal coisa dita como gênero “masculino” e “feminino”, “corpo” e “natureza biológica”. Vinda do ano de 2022, D. Alves, insiste no gênero, comenta que: “meninos devem usar azul”, enquanto “as meninas devem usar rosa”.
Alves traz suas malas recheadas de transfobia e cishéteronormatividade.
Declarou que “nasceu biologicamente mulher” segundo os hospitais da República das Milícias. Está a passar pelo Planeta Terra na tentativa de converter pessoas no gênero.
O JORNAL
ANO T | Planeta Terra, terça-feira, 04 de outubro de 2110 | Nº01030
Hormônio para todes
Como alterar o seu corpo?
Não sendo necessário odiar ou cortar seu órgão genital, elimina-se de uma só vez a testosterona e progesterona do seu corpo. Para saber mais, fale com PBP.
dani silva
UMA CRÔNICA CIBORGUE!
KARINA-001
Os seguintes eventos ocorreram no recinto da delegacia de vigilância do Rio de Janeiro, em uma tarde nublada de quarta-feira, em um tempo não muito distante do nosso. Moacir Filho era dono de uma mercearia situada na rua Aurora, uma testemunha local denunciou o desaparecimento do mesmo, não tendo sido visto a mais de dois anos. Investigações conduzidas pelos policiais Trevisan e Duarte revelaram uma suspeita no caso, Karina de vinte sete anos que começou a trabalhar na mercearia de Moacir desde seu desaparecimento e fora vista na casa do mesmo desde então. Toda a conversa foi transcrita exatamente como se deu, utilizando das iniciais de cada pessoa para melhor identificação das falas:
— Boa tarde, a senhora sabe porque foi trazida até aqui? — T.
— Creio que por se tratar de uma delegacia e ter sido intimada, eu supostamente transgredi algo — K.
— A senhora não cometeu nenhum crime até o momento, que fique claro isso — D.
— Então sou suspeita? — K.
— Até o momento sim. É sobre o desaparecimento do senhor Moacir Filho, seu empregador — T.
— Muito curioso mesmo, a situação toda, fico transbordando de vontade de rir, mas seria indecente não é? — K.
— Como assim vontade de rir? Estamos falando de um homem desaparecido — D.
— (RISOS) De desaparecido ele não tem nada doutores — K.
— Então você sabe o paradeiro dele? — T.
— Pode-se dizer que sim, Moacir nunca mais deixou sua casa, fazem dois anos mesmo — K.
— Você o mantém em cativeiro ou algo assim? Pois nossa equipe foi até a casa dele e não encontrou nada além de roupas e coisas suas — T.
— De certa forma também eram dele — K.
— Eram? Ele morreu? — D.
— Doutores, o caso que vocês têm em mãos não é de vossa alçada, com todo o respeito — K.
— Sua falta de respeito é tremenda em um caso sério como esse, na verdade é tudo muito simples de conectar e pensar; Moacir era seu patrão e você uma interesseira, acabaram se amando, até o momento em que se tornou insustentável para você e o dinheiro falou mais alto — T.
— (RISOS) Vocês falam de dinheiro e ganância, quando digo que foge de suas competências não é com desdém, transcendo toda narrativa que tiverem. Eu de fato nunca amei Moacir, na verdade ser quem ele era se mostrava muito limitante — K.
— Então realmente foi por dinheiro, encontramos hormônios femininos, roupas caras femininas e tudo o que você provavelmente sempre pedia dele, não é mesmo? — D.
— Não, tudo o que eu tive foi me dado por Moacir, ele mais do que ninguém queria exatamente a mim, Karina. Ele mais do que ninguém entendia a necessidade de transformar — K.
— E como você explica o sangue compatível a Moacir encontrado em uma das suas peças de roupa intima? — D.
— Compartilhamos o mesmo sangue — K.
— Mas isso é impossível, você não parece ter grau de parentesco com a vítima, e os vizinhos relataram o desaparecimento dele no mesmo dia que você chegou na casa — T.
— Policiais, vizinhos e sociedade. Todes acham saber muito a respeito dos corpos, o impossível sempre transcorre pelo tempo, e vejam, estou aqui presa por ser quem eu sou — K.
— Isso é uma tremenda autopiedade Karina, você falou de corpo, então realmente o matou?
— Sim — K.
— E por quê? — T.
— Para criar uma versão mais gostosa — K.
A ditadura continua firme e forte, como uma força que dilata e molda tudo e a todes. Sim! A ditadura sobre corpos que criminaliza e mutila a única coisa que sempre foi nosso direito: a de (r)e(s/x)istir. Mas assim como tudo no universo, as coisas tendem a perder sua energia e força, e é da fissura que levantamos, assim como Karina, se é crime lutar pela minha carne e corpo, me prendam!
O trans sempre foi de gredir, cender, bordar, formar e crever!
formigão
anos setenta
brasil
ditadura atenta
moral varonil
mas elas se monta y vai pra pista
kerem brilhar
ser vista
um kaminho a trilhar
mas a polícia embaça
saí na kaputura
viado vira kaça
das viatura
viado não ker dizer
elas era selvagem
o instinto de sobrevivência
na margem
o gênero é desobediência
civil
makiagem salto alto
não é serviu
komo missão dekretando o arauto
liberdade nessa terra
ou eskece
é guerra
na selva de pedra
se vai presa
tem ke ser esperta
já se korta não sai ilesa
mas se liga
é autodefesa
história ke instiga
já sabiam ke anticoncepcional
não era só pra não engravidar
ou hormônio vaginal
era tecnologia de transitar
tinha ke tá kom a karteira assinada
se não pode pá
era fichada
pela lei da vadiagem
akela de antigamente
pra deixar os preto a margem
é kente
no centrão de sp
prisão sem sentido
pode krer
na verdade tinha um objetivo
era a extorsão
elas sabiam ke não podia faltar
o din na mão
trabalhar
na prostituição
para existir
kontrariando o ci$tema
resistir
outras até apelavam pra kontravenção
viver era o lema
pajubá
o dialeto
do yorubá
secreto
só kem é sabia
herança
das pretas velhas antigas
para algumas esperança
eram a cirurgias
outras nem aí
não ligavam pra médikas demagogias
borravam o binarismo
onde tanto faz o ele/ela
meu achismo
o importante era ser dela
da eskruridão da noite
o mano sapatão aki
também despedaçando açoites
manda um beijo pras mona trava aí
SIGRID BEATRIZ VARANIS ORTEGA
Acordei num dia tão bonito, os ventos que sopravam meus cabelos curtos me deram vontade de sair e tomar um ar. O tempo caloroso me ardia a pele. Escolhi o vestido florido, para combinar com a estação. Passei meu batom vermelho. Nada me tiraria de mim mesma. Estava pronta para olhares, de amor e de curiosidade. Mas hoje, só poderiam ser amores. Afinal, é primavera. Calor e amor dão uma boa combinação. Decidi pegar o trem, queria me misturar na multidão da capital. Mas ao chegar lá, fui encaminhada para a delegacia. O motivo: meu corpo, minhas roupas. Na hora a melhor desculpa foi o carnaval…
— Hoje não tem esquenta? Tem sim! Não tá
sabendo? Abre alas, que eu quero passar!
É carnaval fora de época!
Mas acabei ali mesmo, dormindo na delegacia, sob o registro de José Vitalino, a fantasia na qual me enfio todos os dias.
SIGRID BEATRIZ VARANIS ORTEGA
Em memória delas
Eu não tinha assim tanta consciência da nossa subversão. No momento eu vivia uma festa de prazeres e desejos derramados. Nosso encontro rolava sempre às quintas, na mesma encruzilhada. Estávamos sempre em quatro, cinco, às vezes seis. Na madrugada já éramos incontáveis, um grande clube de gostosas. Lembro de Sofia, com seus saltos altos. Lembro de Karina e seus brincos dourados. Da risada estrondosa de Gilda. Dos olhos de capitu da Marcia. A nossa esquina era movimentada, agitada e sem rivalidades: uma doce comunhão de prazeres. Eu vivia a noite como uma criança que desconhece o medo. Minha carne viva em glória de mais uma madrugada de baile. O sexo sujo me atraia, a descoberta, a mão boba para o abismo. Digo abismo, porque nunca se sabe o que está ali. Eu sabia, os outros não. Mas como era gostoso estar entregue ao acaso. Eu lembro também de um tempo em que algumas sumiram, não estavam mais no mesmo ponto de encontro. Um dia, atenta aos cochichos, soube da história de uma gata considerada criminosa. Boatos de que estava com uma navalha. Navalha? Como assim, navalha, fiquei pensando. Na época não consegui entender os códigos. Hoje entendo que a nossa carne não era só de prazer, mas de muita dor também. Em memória delas, escrevo. Para manter viva em mim e nas que virão, o gozo de subverter.
gilbef ROGRIGO GONÇALVES
Sobre nome
Foi o meu primeiro dia, quando o policial me perguntou:
Qual seu nome?
Eu logo respondi: sobre nome?
Na minha cabeça eu precisava inventar outro nome para não morrer ali. Foi a primeira vez que meu coração deu um nó, se encheu de orgulho, como se enche de sangue! Entre aquelas paredes, eu tinha criado uma plantação de bananas inteira para colher. Eu passei uma semana todinha com fome e escrevendo na minha mente algumas frases que falavam assim:
Se um dia tu resolveste comer das bananas, coma do coração da bananeira.
Aquela planta pode viver sem coração.
Quem imagina que ela não tem sentimentos, não imagina que existe coração na bananeira.
Imagina ser humano viver sem coração?
Ser humano vive dos desejos.
Imagina se a barriga fosse que nem cabeça, ser humano tem até desejo de comer banana.
Bananeira sem coração vive, mas se tu tivesses tirado das bananas talvez viver não fosse mais possível para bananeira.
Foi o meu primeiro dia, quando o policial me perguntou: Qual seu nome?
Eu logo respondi: sobre nome!
Ainda era o meu primeiro dia, quando o policial me perguntou: Qual seu nome?
Sobre nome
Sobre viver
Sobreviver
gilbef – Rodrigo Gonçalves Lima Borges da Silva – RGLBS – em dois de outubro de dois mil e vinte dois – pensando nas histórias e vivencias da ditadura para pandemia.
W. Áshlyn Khaoz
O MUNDO, SIM, ÀS AVESSAS!
À muita gente tantos homens “fantasiados” com trajes do outro sexo não gera admiração ou espanto do imaginário comum, pois o epiteto da contemporaneidade é a performatividade sendo alvo dos holofotes do que entende-se coisas tão banais como o ser-Homem e o ser-Mulher. As manolas e os deserdados por Eva que antes só apareciam no tríduo de Momo e saindo das centrais de polícia, agora ocupam as ruas, programas de televisão e canais de Youtube.
Os amantes de estudos sociais não buscam mais tirar fatos presunçosos desses corpos, não se trata do prestígio e cortesia recebido pela mulher que gera no “sexo-forte” um desejo latente que provoca um mal estar civilizatório, tão pouco o desenvolvementismo das cidades e a perda de maneirismos do romantizado cavalheirismo fazem das representantes do “belo-sexo”, “desmentirem a fragilidade de sua natureza”.
A intromissão nos assuntos de cisgeneridade sempre aconteceram e hão de acontecer enquanto essa existir, pois tudo é possível nesse mundo onde o sexo e aquilo que é dito natural parte de um grande teatro (covenhamos que dessa forma, os cisheteronormativos são os piores atores). Então, SIM! Por favor! Às avessas com esse mundo que inventou papéis horríveis de normatividade!
Correio anti-ditadura e a favor da TRANSgressão (14/10/2022)!
Florence Belladonna Travesti
Nos caminhos de Leo e Gretta
e de outras histórias do Brasil
Antes mesmo de começar este texto, recupero aqui o conceito de heterotopia de Michel Foucault, que pode ser compreendido quando falamos de territórios com tempos e espaços outros, com deslocamentos ímpares para a demarcação territorial em que acontecem, e que não encontram pares semelhantes, mesmo que às vezes imaginar a coisa coloque-nos de frente a uma ideia metafísica. A Ditadura Militar do Brasil, entre os anos 1964-1985 foi isso.
Acontecida em um tempo e espaço outro, contar as histórias da ditadura é um desafio até para os historiadores mais experientes, e ainda mais para quem viveu aquele período. Para quem nasceu e cresceu em um período ditatorial, a perspectiva histórica toma outros rumos, não mais localizada no grande período de tempo de sua duração de 21 anos, mas sim na história de vida das pessoas que tiveram essa única referência de sociedade, ao passo em que cresciam e desenvolviam-se entre fases de criança, adolescente e adulto.
Nessa perspectiva, para muita gente, a Ditadura Militar iniciada em 1964 toma outros sentidos, dialogando com memórias muito mais intensas acerca dos cotidianos locais em que essas pessoas viviam, do que uma visão ampla nacional e internacional sobre aquele período histórico vivenciado.
Mesmo assim, se para uma parte dos brasileiros que nasceram e cresceram entre 1964 e 1985, só foi possível ter uma visão ampla dos males da Ditadura nos livros de história na nova democracia, teve outra parte populacional que compreendeu muito bem as articulações e implicâncias da política nacional em suas vidas, sofrendo violências e sendo reprimidos de algumas forma, quando ousaram contestar.
Nesse sentido, trago a este escrito, dois episódios do podcast “Passagem só de ida”, organizado pela instituição civil Casa 1,
o qual conta histórias de pessoas LGBTI+ que migraram para a cidade de São Paulo em algum momento de suas vidas. Os episódios aos quais me refiro, são dois, publicados aos dias 29 de março e 05 de abril deste ano de 2021, referentes às entrevistas dadas por Leo Moreira Sá e Gretta Salgado Silveira, respectivamente. Ambos pessoas trans, que rememoraram o período ditatorial com diferentes momentos de intersecção desse período histórico, perpassando suas histórias de vida e cenas das histórias LGBTI+ do país.
Pela ordem de publicação dos episódios do podcast, das entrevistas aqui referidas, a primeira a ir ao público foi a do Leo Moreira Sá, ao dia 29 de março de 2021, numa segunda-feira pela manhã. Naquela manhã, viajar pelas palavras do Leo foi uma experiência ímpar, que a partir de suas memórias de vida, nos deu um panorama histórico importante, das histórias dos movimentos LGBTs do Brasil, mas também do fervo político que permeou a Ditadura Militar.
Seguindo a linha de vida e exposição discursiva do Leo, nossas primeiras impressões vão de encontro com o início da sua experimentação de gênero em São Bernardo do Campo, região do ABC paulista onde nasceu. É lá que, ainda criança, nos conta como os borramentos das fronteiras de gênero têm um significado importante e como isso o fará perceber processos da vida.
Já na adolescência, as fronteiras de gênero tomaram rumos psiquiátricos, quando Leo começou a tomar remédios prescritos por psiquiatra. Ao dizer na entrevista que lembra-se ainda hoje do nome do primeiro remédio prescrito, Valium, Leo nos coloca de frente a uma realidade de muita gente trans, que encara, muitas vezes na infância e adolescência, um processo de patologização de suas identidades.
Não à toa, por muitos anos as ciências médicas e psiquiatria, psicologia e alguns psicanalistas, nos viam como doentes mentais ou pervertidos, relocalizando nossas identidades transgêneras no CID (Catálogo Internacional de Doenças) só em junho de 2018, quando saímos da sessão de transtornos mentais e fomos colocadas nas prescrições de cuidados sexuais.
Isso significa dizer que os processos de marginalização das identidades acontecem de maneira organizada. Em relação à
homossexualidade, por exemplo, as trangeneridades deixam de ser consideradas doença só 28 anos depois, e esse atraso de quase 30 anos coencide com aspectos outros, como a expectativas de morte de pessosas trans, sobretudo mulheres travestis, aqui no Brasil.
Leo ainda nos diz que durante muitos anos da sua vida, não sabia exatamente definir sobre sua transgeneridade, estando em algum lugar que não sabia ao certo o que era. Esse não-lugar, perpassa o modo como Leo viu processos políticos, mas também como ele absorveu as contraculturas fervilhantes do período ditatorial.
A Ditadura militar do Brasil teve início em 1964, mas foi gestada meses antes. Olhando por viés comparativos, até o seu fim em 1985, o Brasil vivia um período histórico peculiar, sobretudo porque o conservadorismo ditatorial não condizia com as novas vertentes de pensamentos políticos emergentes em outras localidades do globo.
Exatamente 4 anos depois do início da ditadura militar aqui no Brasil, o Estados Unidos da América experimentava pela primeira vez uma onda massiva de protestos anti-racistas, impulsionados pelos Panteras Negras, e grandes intelectuais como Angela Davis. Ainda nesse período de 1968 para o início da década de 1970, tornaram-se cada vez mais abrangentes os processos de abertura cultural, o que mais tarde chamou-se de Revolução Sexual, tomando abrangências tanto na grande potência norte-americana, quanto em países da Europa como a França.
Foi por volta dessa época que, com cerca de 11 anos, Leo deixava São Bernardo do Campo e saia rumo à São Paulo, com toda a família. Em São Paulo, Leo conta-nos das suas lembranças de escola e ensino médio, concluído em 1978. Depois do ensino básico, o Leo conta-nos que fez cursinho por alguns meses, até sua entrada na USP, quando passou a se colocar politicamente de maneira assumida.
Ao passo que Leo começava os primeiros contatos com os intelectuais da filosofia francesa, nos anos iniciais da década de 1980, ainda nos EUA ganhava-se cada vez mais força uma onda anti-gay, intensificada pela epidemia do HIV, e espalhando-se pelo ocidente.
Leo nos conta da tenebrosidade dessa época, onde grupos radicais agrediram pessoas LGBTs até a morte, na Avenida Paulista, realidade que se converteu em drama da comunidade LGBT local, frente às dificuldades de repercutir as violências contra grupos minorizados em momentos de conservadorismos, como aquele da década de 1980.
Leo também nos conta que, na mesma época que condensava o período ditatorial no Brasil, estavam em latência a Guerra Fria, caracterizada sobretudo por corte de relações diplomáticas e comerciais entre EUA e URSS, com implicações políticas nos países aliados. É na mesma época em que o povo de várias nacionalidades ocidentais deparam-se com estruturas internacionais fragilizadas, e um crescente medo de novos ataques nucleares, ao estilo das cidades de Hiroshima e Nagasaki da Segunda Guerra Mundial.
É neste momento em que Leo conhece o SOMOS, grupo pioneiro no movimento LGBT do Brasil, que contou com nomes como João Silvério Trevisan. À época, o SOMOS marcava-se enquanto um ponto nodal de resistência LGBT em meio a ditadura.
Já Gretta, ou Gretta Sttar, como popularmente é conhecida, vivia um outro momento, um momento de ascensão social na Ásia.
A história da Gretta, publicada pelo podcast “Passagem só de ida” ao dia 05 de abril, parte do seu local de nascimento, Santos, litoral de São Paulo. Em sua narrativa, Gretta traz aspectos das vivências travestis e transformistas que, mesmo com a Ditadura Militar, conseguiram destaque.
Se para Michel Foucault os dispositivos de poder estão em qualquer lugar, Gretta relembra-nos uma fala de Rogéria, ao concordar que foi o período ditatorial em que ganhou mais dinheiro. Se os dispositivos políticos incidiam sobre o povo de maneira repressora, era nas boates em que a diversão burlava todas as proibições.
Mas é preciso dar um passo atrás, na infância e adolescência de Gretta. Sua narrativa perfaz uma ambientação com alguns pontos muito comuns para muita gente trans feminina e travesti. Conta-nos que desde criança, até por volta dos 16 anos de idade, era vista como esquisita, talvez introspectiva. Conta-nos que viveu uma infância boa, cercada pelo auxílio do pai farmacêutico
e da mãe dona-de-casa, e que foi uma criança bem assistida, com boa educação, lazer e esporte.
Por outro lado, na adolescência, na transição das décadas de 1970 para 1980, foi que começou a perceber o corpo de uma maneira diferente, a compreender por comparação, que não tinha seios desenvolvidos como os de outras meninas. Gretta cita-nos uma situação em que, ao observar algumas meninas passeando na areia da praia, teve a ação impensada de cobrir o seis com as mãos, por timidez emergente.
É nessa ambientação que Gretta descobre sua transgeneridade de maneira sozinha. Diz-nos que tinha um padrinho gay, mas que este só assumiu sua homossexualidade já na velhice, há pouco tempo. E isso nos diz muito, de um tempo em que os processos de conservação das normatividades, delegando pessoas LGBTs ao silêncio, que para garantir uma existência social tinham que reprimir suas identidades a vida inteira.
Nesse período da década de 1970, ao passo que Leo Moreira Sá já saía do ensino médio e iniciava sua ambientação pela USP, Gretta articula sua saída de Santos para a cidade de São Paulo, por compreender que descobrir aqueles sentimentos que surgiam nela, seria mais difícil próximo aos olhos dos familiares.
Na transgeneridade, compreender os processos que nos subjetiva para uma transição de gênero nem sempre são claros. Ao passo que uma travesti compreende sua identidade feminina, quase sempre, a família composta por um pai e uma mãe cisgêneros, que também tiveram pais e mães cisgêneros, e assim decrescivamente, continuam assimilando nossos corpos a figura de uma menino que viram nascer.
Já na faculdade, Gretta diz-nos que começou a compreender algumas de suas indagações de gênero, a partir de amizades com outras pessoas LGBTs e mulheres que conheceu. É nesse período da década de 1970, que Gretta começa a tomar hormônios e, percebendo o quão marginalizadas eram as mulheres travestis (quase um paradigma transgênero perpetrado ao longo dos séculos), ela se apavorou ao perceber que com a transição de gênero, ela poderia não encontrar acolhimento familiar, frente ao seu uso de hormônios
e mudanças corporais. Foi pensando nisso que nos diz que não esperou ser expulsa de casa, que voltou à casa do padrinho com quem morava, arrumou as malas e partiu em direção a Brasília.
Sem dar notícias para a família por 2 anos, em Brasília reencontrou um amigo antigo que a levou de volta a Santos. De volta a sua cidade de origem, foi aceita de volta a casa dos pais, mas com a condição de ser o que ela quisesse à rua. Foi então que Gretta arranjou emprego em uma boate de Santos e conheceu um agente de shows que a levou para o Japão.
Depois de viajar por mais de 20 países da Ásia, fazendo shows, ela retornou para Santos ao receber a notícia que o pai estava doente e bastante debilitado. Em Santos, voltou a trabalhar por algumas semanas nas boates locais, e depois de um tempo, por convite, retornou para São Paulo, para trabalhar em boates como a Nostro Mondo.
Neste meio tempo de retorno, Gretta adoeceu, ficando bastante debilitada em UTI por alguns dias e, ao fazer exames, descobriu que havia contraído HIV. É nesse tempo, finais da década de 1980 para 1990, que Gretta se viu assustada com os processos de afastamento de alguns amigos e conhecidos, pelo preconceito que existe em nossa sociedade, ainda hoje, sobre o vírus da imunodeficiência humana.
Foi então que em determinado dia, Gretta para um show ao meio, abre o microfone e assume a sorologia positiva, dizendo-nos que mais uma vez jogou todos os fantasmas que assustavam-na para longe.
Ao passo que Gretta narra sua história, ela nos delimita um período histórico ímpar, em meio a ditadura militar e em relação a sua própria história de vida, assim como de tantas outras travestis ainda hoje, em um Brasil que atualmente flerta com a Ditadura de outrora. Gretta nos dá algumas pistas interessantes de um momento histórico de valorização das travestis.
Na história do Brasil, as décadas de 1950, 1960 e anos iniciais de 1970 marcam uma supervalorização nacional e internacional das travestis. Sobretudo na década de 1950, é que as travestis eram as grandes rainhas dos carnavais. É no mesmo período que
ascende as “europeias”, as travestis que imigravam para a Itália, e voltavam de lá belíssimas, feitas e endinheiradas. Muitas, sustentavam suas famílias a distância, mesmo que as famílias jamais as aceitassem enquanto mulheres.
Gretta conta que pouco percebeu da repressora Ditadura Militar no Brasil, e que começou a descobrir o que foi em completude esse período histórico depois, com os livros de história. Mesmo assim, mais do que qualquer outra história, a história de Gretta da história LGBT nacional de maneira não óbvia, deixando-nos entrever a história do Brasil pela desterritorialidade imposta às travestis deste país.
Se a Ditadura cometeu crimes horrendos entre 1964 e 1985, com repressões e torturas, era nas boates que encontravam-se heterotopias prazerosas, que permitiam pessoas LGBTs sobreviverem a tudo aquilo.
Novamente, para quem nasce e cresce em períodos repressivos, o campo político está diretamente atrelado à sobrevivência. Nos processos de desterritorialidade de Gretta, ela sobreviveu bem, em meio a mesma ditadura que caçava travestis às ruas, viajou o mundo, aprendeu culturas, línguas, e depois voltou. Gretta nos ensina que, apesar das dores do não-lugar, também se pode ter prazer e conquistas. A vida de Gretta, mais que qualquer exemplo, dizem-nos dos sentidos das viagens de viver, com paisagens, com alguns caminhos estreitos e outros largos, mas sempre uma viagem cheia de paisagens.
Se Leo Moreira Sá nos conta de não-lugares dentro de si que o fez administrar a vida politicamente, Gretta Salgado Silveira nos conta de um não-lugar imposto socialmente às travestis, com consequências dolorosas mas que às vezes, pode dar outros sentidos a vida, e nos salvar alegremente das mediocridades de uma ditadura.
Memorial da Resistência de São Paulo
Percursos Curatoriais:
memória, gênero e ditadura
O Memorial da Resistência de São Paulo é uma instituição cultural vinculada à Secretaria de Cultura e Economia Criativa do Estado
de São Paulo. Inaugurado em 2009, é dedicado à preservação das memórias políticas da resistência e da repressão no período republicano brasileiro, com especial destaque para a ditadura civil-militar (1964-1985). Fundamentado ainda por um Plano Museológico, elaborado em 2010 e atualizado em 2019, a instituição desenvolve-se por meio de seis linhas de ação: Lugares da Memória, Coleta Regular de Testemunhos, Centro de Referência, Programa de Exposição, Ação Educativa e Ação Cultural. Articuladas, essas linhas possibilitam à instituição atuar no campo da pesquisa, salvaguarda e comunicação patrimoniais tendo como enfoque os conceitos de resistência, controle e repressão política fundamentados, principalmente, nas memórias de indivíduos e grupos que resistiram ante a violência do Estado e a supressão dos direitos constitucionais em nosso país. No entanto, tendo como pressuposto a ação museológica numa perspectiva processual, o Memorial não só se devota à memória política brasileira, mas a articula com as questões contemporâneas.
Por esta capacidade de articulação com o contemporâneo, e por possuir uma forte orientação formativa e educacional, é que, para o Centro de Referência do Memorial da Resistência de São Paulo é uma enorme alegria e satisfação apresentar ao público a potente publicação coletiva Não parecem sentir vergonha, fruto da parceria com o Acervo Bajubá por meio do projeto Percursos Curatorais.
O Projeto Percursos Curatoriais tem por objetivo uma intensa investigação a partir do acervo do Centro de Referência do Memorial da Resistência e busca ampliar o debate e o conhecimento sobre assuntos caros à instituição, visando a difusão do acervo e
dos conhecimentos gerados a partir dele junto ao público do museu. Neste ano, vislumbrando subsidiar as discussões para o
desenvolvimento da nossa próxima exposição temporária dedicada às memórias das mulheres militantes no contexto da última ditadura e sua presente atuação em nossa história, convidamos o coletivo Acervo Bajubá para desenvolver, em parceria, uma pesquisa em nosso acervo sobre o tema “gênero e ditadura”.
Considerando a importância do trabalho deste Coletivo, o projeto conjunto visou auxiliar o Memorial da Resistência na problematização dos amplos contornos do tema “gênero” e a abrangência contemporânea do entendimento do termo “mulher”, além de mapear as lacunas e potencialidades que o acervo possui frente a este debate. Como processo, o Percursos Curatoriais gerou uma imersão de pesquisa em nosso acervo e o desenvolvimento de um dossiê temático sobre gênero, memória e ditadura, da qual essa publicação faz parte.
Como resultado, temos a possibilidade de nos dedicarmos a um tema caro à contemporaneidade e, institucionalmente, o Centro de Referência, este espaço físico e virtual destinado à conexão de fontes de pesquisa sobre o repertório patrimonial do Memorial, ganha entrevistas, vídeos e publicações que ampliam a reflexão e a promoção da cidadania e da democracia, voltamos à valorização de uma cultura em direitos humanos. Assim, frente à urgência do tema, temos a alegria de incorporar em nosso acervo, como fruto desta parceria, um conjunto de importantes memórias e ações que trazem como foco a perspectiva da luta por maior igualdade no debate sobre gênero, raça e sexualidade – temas que devem ser um permanentemente norte em qualquer política reparatória ou ação que busque mais justiça social!
O Acervo Bajubá é um projeto comunitário de registro de memórias das comunidades LGBT+ brasileiras. O projeto se iniciou em 2010 com o objetivo de constituir um acervo documental voltado para a preservação, salvaguarda e investigação historiográfica da arte, memória e cultura LGBT+. Como parte de sua proposta de promover e difundir a cultura, o patrimônio histórico e artístico e as memórias das comunidades LGBT+ brasileiras, o Acervo Bajubá colabora com exposições, promove capacitações sobre história e memória LGBT+ e produz projetos audiovisuais de registro, mediação e circulação de narrativas sobre as histórias de pessoas LGBT+ no Brasil.
+ acervobajuba.com.br
Agrupamentos é uma iniciativa editorial de pesquisa-ação em memória pública, comunicação comunitária e economia solidária. A proposta parte de uma metodologia de trabalho processual que envolve atividades de diálogo, formação, criação, desenho e circulação de publicações coletivas que reverberam memórias e narrativas invisibilizadas de territórios, identidades e comunidades diversas.
+ @seloagrupamentos
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